ARQUIVAMENTO
DEFINITIVO
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Autor: Sergio Demoro Hamilton
Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público
do
Estado do Rio de Janeiro
Publicação autorizada por especial deferência da Revista
da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ – www.emerj.jr.gov.br
- extraída do vol. 10 , nº. 39, págs. 85-103
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1.
Sabe-se
que o despacho de arquivamento é, por sua própria natureza, provisório, podendo
o procedimento respectivo ser reaberto a todo tempo, desde que, nos termos da
Súmula 524 do STF, surjam novas provas. Entenda-se, desde logo, o que sejam
"novas provas". Estas indicam alteração substancial dos fatos até então
apurados, ensejando, destarte, a reabertura das investigações. Ela pode decorrer
de requerimento da vítima ou de seus familiares (providência muito comum) ou
mesmo de qualquer pessoa do povo, caso o crime seja de ação penal pública
incondicionada (art. 27 do CPP). O desarquivamento ainda pode resultar de
investigações efetuadas pela própria autoridade policial, tal como permitido
pelo art. 18 do CPP. Nesse artigo está dito que ela, autoridade policial, após o
arquivamento, não fica impedida de proceder a novas pesquisas, se de "outras
provas" tiver notícia. Caso as pesquisas em questão resultem frutíferas, caberá
à autoridade policial levar ao conhecimento do Parquet o que tenha
apurado para que ele proceda como entender de direito.
2.
Observe-se
que a Súmula 524 do STF adota, com inteira propriedade, a palavra despacho,
demonstrando, com tal redação, que a manifestação jurisdicional em exame não
assume o caráter de decisão e, muito menos, de sentença. Isto retrata, com
fidelidade, o caráter provisório que lhe é imanente. Ela opera, sempre,
rebus sic stantibus.
3. Impõe-se, na oportunidade, fazer uma consideração de
ordem técnica a respeito da expressão "novas provas" constante da Súmula 524 do
STF. Prova, com rigor científico, é aquela produzida em juízo, revestida das
garantias do contraditório e da ampla defesa e que integra o devido processo
legal (art. 5º, LV, da CF). No particular, a prova oral, para que possa servir
de esteio a uma sentença definitiva, haverá de submeter-se ao crivo daquelas
exigências do Texto Magno. É certo que se poderá argumentar no sentido de que,
ao lado da prova oral (testemunhal, palavra do ofendido etc.) outras existem,
ditas irrepetíveis. É o caso típico da prova pericial, que, em regra, é
produzida na fase pré-processual (art. 6º, VII, do CPP), uma vez que, em
incontáveis infrações penais em que ela se faz presente, os vestígios tendem a
desaparecer com o tempo. Daí a urgência com que a prova técnica deva ser
realizada. No entanto, mesmo em tal circunstância, a perícia pode vir a ser
questionada em juízo, através do chamado contraditório diferido. Além do mais,
dependendo do caso concreto, nada impede que a autoridade judicial venha a
ordenar a realização de novo exame (art. 181, parágrafo único, do CPP).
Suponha-se, como exemplo, que determinado documento submetido a exame
caligráfico na fase do inquérito policial (art. 174 do CPP) venha a ser
contestado em juízo, sob a alegação de que o resultado da perícia grafotécnica
não retrata a verdade; ora, ele, documento, está nos autos, nada impedindo,
assim, seja novamente periciado, por outros peritos, caso o juiz julgue
conveniente ou mesmo necessário que novo exame se realize. No momento oportuno,
por ocasião da sentença, caberá então ao magistrado valorar a prova em questão
como entender de direito (art. 157 do CPP), acolhendo ou rejeitando uma das
perícias ou aceitando, em parte, uma delas ou, até mesmo, desprezando ambos os
laudos.
Portanto, entenda-se bem, a palavra "prova", quando apresentada na fase de
inquérito policial ou em qualquer outra peça de informação idônea, é aqui usada
para fins exclusivamente didáticos, não assumindo um caráter estritamente
técnico, pois a "prova" apresentada na fase que antecede a ação penal
encontra-se direcionada, basicamente, para o Ministério Público ou, quando for o
caso, para o querelante. Daí a afirmação de certa parte da doutrina no sentido
de que faltaria justa causa para a ação penal, caso ela não figurasse como
lastro para a denúncia, como suporte fático para a acusação. No meu
entendimento, faltaria ao autor, em tal emergência, interesse de agir para o
processo penal, acarretando a carência de ação.
Diga-se o mesmo, no caso de
ação privada (art. 19 do CPP), bem como na hipótese, bastante rara, de queixa
subsidiária (art. 29 do CPP).
Em
outras palavras, o suporte fático é indispensável para o ajuizamento da ação
penal uma vez que a denúncia ou a queixa não são peças de ficção. Ambas repousam
em algum dado concreto, sob pena de traduzirem uma acusação temerária, que pode,
inclusive, acarretar conseqüências de ordem penal para o trêfego que se arvore
em formulá-la.
Tudo isso resulta bem claro da
leitura da própria lei processual penal (arts. 12, 27, 28, 39, § 5º, e 46, § 1º,
do CPP e 77, § 1º, da Lei 9.099/95).
3.
Em
que caso, então, caberia o arquivamento?
A lei
não cogitou de indicar as hipóteses possíveis de arquivamento, partindo do fato,
quero crer, de que, uma vez adotado o princípio da obrigatoriedade da ação penal
pública (art. 24 do CPP), não haveria porque enunciá-los, tendo em conta que não
seria comum a sua incidência. Isto resulta bem claro da leitura do art. 43 do
CPP, que se ocupa dos casos de rejeição da inicial de acusação por falta de uma
das condições para o exercício regular do direito de ação. Dessa maneira,
somente à falta de uma das condições da ação, segundo o nosso Código, é que a
denúncia ou a queixa poderá ser rejeitada. Como teremos a oportunidade de
apreciar, o referido art. 43 não esgota todos os casos de rejeição da inicial
acusatória, embora mantido em sua integralidade o princípio da legalidade, como
será analisado (art. 24 do CPP).
É
certo que boa parte da doutrina1 sustenta
que o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública restou mitigado com o
advento da Lei 9.099 de 26.9.1995, que conferiu regulamentação ao mandamento
constitucional do art. 98, I, da Lei Maior, ao permitir a transação nas
infrações penais de menor potencial ofensivo.
Volta-se, pois, à indagação: em que casos, no sistema do Código, seria possível
o arquivamento?
a) quando o fato, a toda
evidência, não constituir infração penal;
b) quando a punibilidade
estiver extinta;
c) quando faltar condição
exigida em lei para o exercício da ação penal;
d) quando inexistirem indícios
de autoria;
e) quando faltar, no inquérito
policial ou na peça de informação, suporte fático mínimo indispensável para uma
imputação.
Assinale-se que, no regime da Lei 9.099/95, da mesma forma, será possível o
arquivamento do termo circunstanciado e o art. 76 daquele diploma legal a ele
faz referência de forma expressa, como, aliás, não poderia deixar de ocorrer,
pois, também lá, poderia apresentar-se uma das situações processuais acima
referidas, embora a hipótese, dada a natureza das infrações penais de que se
ocupa aquela lei, seja remota. É certo que, em alguns casos, o procedimento será
remetido para o Juízo comum (arts. 66, parágrafo único, e 77, § 2º, da Lei
9.099/95), salvo quando surgir evidente que nada resultará para a apuração do
fato, desde que constatada a inutilidade da realização de qualquer outra
diligência.
4.
Colocada
a temática nestes termos (4, supra), vejamos em que casos o arquivamento
poderá assumir caráter definitivo, despindo-se de seu caráter provisório.
Comecemos, por exclusão, pela análise das situações processuais em que ele
reveste natureza provisória. Comumente o arquivamento tem merecido exame dessa
forma, como é natural.
A
primeira hipótese em que o arquivamento apresenta natureza provisória é aquela
em que o Ministério Público vê-se à frente da falta de condição exigida em lei
para o exercício da ação penal. Vislumbre-se, por exemplo, o caso de um crime de
ação penal pública condicionado à representação do ofendido ou de quem tiver
qualidade para representá-lo (arts. 24 do CPP e 100, § 1º, do CP). Suponha-se,
não importa a razão, que o inquérito policial tenha sido instaurado com violação
ao art. 5º, § 4º, do CPP. Chegado a juízo e não tendo o ofendido ofertado
representação, só caberá ao Parquet requerer o arquivamento por falta
daquela condição de procedibilidade. Torna-se claro que, uma vez satisfeita a
condição, o inquérito policial será desarquivado (art. 43, parágrafo único, do
CPP), legitimando a atuação do Ministério Público que poderá oferecer denúncia
(desde que presentes, evidentemente, as demais exigências para o exercício da
ação penal) ou mesmo requerer o arquivamento do inquérito policial por razões
outras que não importem no reconhecimento da falta de condição de
procedibilidade, uma vez que o Ministério Público não se encontra vinculado, de
qualquer maneira, aos termos da representação.
É
preciso, no entanto, que a representação, no caso versado, seja ofertada dentro
do prazo decadencial (arts. 38 do CPP e 103 do CP). Acrescente-se, ainda, que a
representação, embora regulada minuciosamente no art. 39 do CPP, não é uma peça
formal, bastando que, de forma inequívoca, fique demonstrada a vontade do
ofendido no sentido de ver processado o autor do fato criminoso. Ela nada mais é
que uma autorização dada pelo particular para que o Ministério Público possa
exercer a ação penal (art. 129, I, da CF). Dessa maneira, no paradigma trazido à
colação, bastaria qualquer manifestação idônea do ofendido, para que o
Parquet pudesse atuar. Caso a representação venha a ser ofertada a destempo,
caberá ao Ministério Público requerer a extinção da punibilidade pela ocorrência
da decadência (art. 107, IV, segunda figura, do CP c/c o art. 38 do CPP). Se o
juiz vier a acolher a fala do Parquet, declarará a extinção da
punibilidade do fato e, em razão de tal decisão, o inquérito policial estará
arquivado. Esta última hipótese de arquivamento, no entanto, revela certa
peculiaridade que será objeto de análise no momento oportuno, pois, uma vez
preclusa a decisão, o arquivamento se tornará definitivo (13, infra).
Portanto, neste primeiro enfoque do arquivamento, a providência será sempre
provisória, pois, uma vez satisfeita a condição estabelecida pela lei para que a
ação penal possa ser exercitada, o Ministério Público estará habilitado a
ajuizar a demanda. E tanto isto é verdade, que a lei processual penal, em seu
art. 43, parágrafo único, deixa patente que a rejeição da denúncia em tal
situação não obstará o exercício da ação penal, desde que satisfeita a condição.
O aludido dispositivo (art. 43), convém repetir, enumera as causas que motivam a
rejeição da inicial da acusação (4, supra).
No
caso ora em exame, tem pleno sentido a seguinte pergunta: cabe recurso contra o
despacho de arquivamento? A jurisprudência, com inteiro acerto, tem entendido
ser irrecorrível a "decisão" que o determina. Podem ser anotados alguns julgados
nesse sentido: STJ, Rec MS 5840, in DJU de 4.8.97, p. 34888, RT 422/316
e
760/654 entre outros.
5.
Outra
modalidade de arquivamento provisório encontra lastro no fato da inexistência de
indícios de autoria. Em nosso processo inexiste ação penal contra pessoa
incerta. Pode ocorrer que os autos não apresentem dados qualificativos completos
a respeito do autor da infração penal. Tal circunstância não impede o exercício
da ação penal desde que inexista dúvida quanto à sua identidade física. É por
tal razão que o Código, no art. 41, ao ocupar-se dos requisitos que a petição
inicial deve conter, exige a qualificação do acusado ou os "esclarecimentos
pelos quais se possa identificá-lo". Portanto, ainda que incompleta a
qualificação, desde que se possa individualizar o denunciado, estabelecendo sua
identidade física, não se poderá falar em falta de indícios da autoria. É muito
comum a adoção da chamada qualificação indireta, que se faz para suprir a
ausência de qualificação direta, quando o indiciado encontra-se foragido. Ela é
feita através de um levantamento levado a efeito pela autoridade policial,
mediante investigação, e que, muitas vezes, supre, por completo, a qualificação
direta.
A
autoria, como sabemos, toca de perto com a legitimatio ad causam passiva;
daí sua relevância para a formação da relação processual válida.
Portanto, meros defeitos na
qualificação do indiciado, desde que certa a sua identidade física, não
justificam o arquivamento. Por tal motivo o art. 259 do CPP permite, a qualquer
tempo, no curso do processo e, até mesmo, na fase de execução, a retificação,
por termo nos autos, dos dados qualificativos do imputado.
É
chegado o momento de estabelecer limites no que respeita à qualificação do
indiciado. A simples referência a "fulano de tal, negro, alto e magro" para
indicar o autor do fato criminoso não serve para individualizar qualquer pessoa.
Caso tal se dê, caberá ao Ministério Público requerer o arquivamento do
inquérito policial em razão da falta de indícios da autoria. Veja-se, a
propósito, decisão emanada da 3ª Câmara Criminal do TJSP, no recurso criminal n.
53.051, que considerou ser sobremodo inseguro e "até muito temerária", denúncia
contendo apenas aqueles dados ("preto, alto e magro"),
rejeitando-a.
O
arquivamento, quando ocorre a falta de indícios da autoria, dar-se-á por
despacho do juiz atendendo a requerimento do Ministério Público. Em ocorrendo a
hipótese, o despacho em questão é irrecorrível, somente tornando-se possível o
desarquivamento se obediente aos termos da Súmula 524 do STF. Surgindo novas
"provas" da autoria, até então ignorada, dá-se a reabertura da investigação
(veja-se, a propósito, o item 3, supra).
Duas
palavras, ainda, a respeito do que se deva entender por qualificação.
Qualificação é o conjunto de qualidades que ornamentam uma pessoa, compreendendo
o nome (aqui indicados o prenome e o apelido de família), a alcunha ou vulgo e,
eventualmente, o pseudônimo, o estado civil, a data de nascimento, a
naturalidade, a nacionalidade, a filiação, a atividade que exerce, o nº do
registro civil e o do CPF e os endereços (residencial e de trabalho). Observe-se
que, raramente, se encontrará uma qualificação direta revestida de tantos dados
informativos. Nem por isso, desde que não haja dúvida sobre a identificação do
indiciado, se poderá falar em falta de indícios de autoria. É de se ter em conta
que as omissões acidentais, relativas à qualificação (ou quaisquer outras),
constantes da denúncia poderão ser supridas a todo o tempo, antes da sentença
final (art. 569 do CPP). E o art. 259 do CPP, voltado de forma específica para a
qualificação, apresenta-se, ainda, mais completo ao permitir a retificação
daqueles dados até mesmo na fase de execução.
Acrescente-se, ainda, a importância de tais informações para o fim de elaboração
da estatística criminal, que terá por base o boletim individual que é parte
integrante dos processos (art. 809 do CPP).
6.
Outra
circunstância que enseja o arquivamento provisório reside na falta de suporte
fático mínimo para que a acusação possa ser apresentada.
A denúncia, como já posto em
relevo ao início do presente estudo, não consiste em uma peça de ficção, ela
haverá de encontrar esteio em fatos idôneos para que possa ser ofertada. É certo
que as informações poderão ser complementadas em juízo, qual se colhe do art.
10, § 2º, do CPP. Porém, a peça de informação ou o inqué-rito policial deverá
conter, desde logo, um mínimo de indicações de maneira a permitir que a denúncia
possa ser oferecida. Em caso contrário, só restará ao Ministério Público
promover a devolução dos autos do inquérito policial para a complementação das
diligências (art. 10, § 3º, do CPP) ou requisitar a instauração do inquérito
policial (art. 5º, II, do CPP) para melhor apurar os fatos chegados ao seu
conhecimento por qualquer via merecedora de crédito (arts. 27 e 39, § 5º, do
CPP).
Como
já ficou dito, a necessidade de suporte fático para que a denúncia possa ser
apresentada resulta bem nítida da leitura dos arts. 12, 27, 28, 39, § 5º, e 46,
§ 1º, todos, do CPP.
Desde
que o Parquet não disponha de indicações mínimas para ajuizar a ação
penal, só lhe restará requerer o arquivamento do inquérito policial ou da peça
de informação. Entenda-se bem: para acusar o Ministério Público não necessita de
um suporte fático completo e exaustivo, mas apenas de um mínimo de "provas". A
instrução criminal probatória produzida em juízo dará ensejo a que se
complemente eventual insuficiência de dados, podendo propiciar até mesmo que a
denúncia venha a ser aditada.
Deverá o juiz, diante do requerimento de arquivamento do Parquet, fundado
na falta de indicações mínimas para o oferecimento da denúncia, determinar,
mediante despacho, o arquivamento do procedimento respectivo, desde que,
evidentemente, venha a acolhê-lo.
Torna-se claro que, no caso, o
arquivamento será provisório, podendo o inquérito policial ou a peça de
informação, a todo o tempo, ser desarquivado desde que a hipótese venha a
subsumir-se nos termos exigidos pela Súmula 524 do STF.
Averbe-se ainda que, em tal situação processual, o autor do fato encontra-se
perfeitamente indicado. No entanto, as informações constantes dos autos não
permitem que a denúncia seja oferecida. Trata-se, como de observação tranqüila,
de formulação distinta daquela tratada no item 6, supra, em que se viu abordada
a falta de indícios da autoria.
Aqui, faltaria interesse de
agir para o Ministério Público.
7.
Chega-se,
agora, à razão de ser do presente estudo, que mereceu o título provocativo de "O
arquivamento definitivo". É que, como de elementar sabença, a provisoriedade é
típica do arquivamento. Por tal razão é que a Súmula 524 do STF adota a seguinte
redação: "Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento
do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada sem novas provas"
(destaques meus).
O despacho, por natureza, traz
em si uma carga decisória mínima e, por isso mesmo, em regra, é irrecorrível.
Dessa maneira, quando o juiz designa dia e hora para a realização de uma
audiência, quando determina a notificação de uma testemunha para ser inquirida,
quando, praticando ato de impulso processual, ordena que as partes falem em
diligências ou em alegações finais e assim por diante, está o magistrado
prolatando despachos. São, todos eles, manifestações jurisdicionais tomadas
rebus sic stantibus, sujeitas a revogação desde que situações
processuais novas aconselhem sua modificação. Todos aqueles despachos
caracterizam atos ordinatórios do procedimento, indispensáveis para o seu
regular desenvolvimento.
No caso de arquivamento é o
que, em regra, ocorre como tivemos a oportunidade de apreciar até aqui (5 a 7,
supra).
No
momento, cabe-nos examinar situação processual diversa. Trata-se do arquivamento
ocorrido quando o fato apurado, a toda evidência, não constitua infração penal.
Em ocorrendo tal emergência, o juiz pratica ato decisório, atendendo sempre a
requerimento do Ministério Público. Não se trata de mero despacho do magistrado
envolvendo uma questão de fato ("prova"), fato que hoje é desconhecido nos autos
e que poderá, no futuro, ser descoberto, dando margem ao oferecimento de
denúncia ou, pelo menos, à reabertura das investigações. Trata-se, agora, quando
do reconhecimento da atipicidade do fato, ao revés, de matéria de direito não
resolvida através de mero despacho, mas, sim, por meio de uma decisão. E por
tratar-se de decisão, a matéria nela ventilada desafia o recurso de apelação
residual contemplado no art. 593, II, do CPP.
Cabe,
desde já, questionar: quem poderá apelar em tal situação?
O
Ministério Público, sabe-se, por haver requerido o arquivamento, não terá
interesse na reforma ou na modificação da decisão (art. 577, parágrafo
único, do CPP).
O
indiciado, muito menos, por faltar-lhe sucumbência.
Penso
que a decisão de arquivamento, in casu, poderá ser
enfrentada pelo ofendido ou, à sua falta, por seu cônjuge, ascendente,
descendente ou irmão. Não haverá, em regra, é bom que se assinale,
qualquer interesse material de ressarcimento do dano, pois, segundo dispõe o
art. 67, I, do CPP, a decisão de arquivamento não impede a propositura da ação
civil. Porém, esta regra está voltada para a figura do indiciado.
Com
efeito, o fato pode ser atípico, mas exigir reparação civil. Aliás, veda-se a
ação civil somente quando, em sentença absolutória houver sido, categoricamente,
reconhecida a inexistência material do fato (arts. 66 e 386, I, do CPP) ou,
ainda, nas situações processuais contempladas nos arts. 65 e 386, V, do CPP.
Nestas últimas hipóteses, com reservas, isto é, não de forma absoluta.
Porém, subsiste também para o ofendido (ou de quem lhe fizer as vezes) o
interesse moral de ver processado o autor do fato. Não só o dano moral advindo
do fato, mas também eventual dano material, como se verá abaixo (12, infra),
pois, como posto em relevo, o reconhecimento no sentido de que o fato não
constituiu infração penal não afasta o ressarcimento eventual do dano causado
pelo indiciado beneficiado pelo arquivamento.
Ocorrendo ser o ofendido incapaz incumbe ao seu representante legal interpor o
recurso respectivo.
No
caso vertente, não há falar em irrecorribilidade do despacho de arquivamento,
tal como apontado linhas acima (5 a 7, supra), uma vez que as
conseqüências da decisão são bem diversas daquelas outras já examinadas
(5 a 7, supra). Aqui, encontra-se em jogo uma decisão com força de
definitiva, trancando, de uma vez por todas, a ação penal; nos demais casos
estudados (5 a 7, supra), um mero despacho que traz em si mesmo o caráter de
provisoriedade, podendo, a todo o tempo, enquanto não extinta a punibilidade do
fato, o feito criminal ser reaberto, desde que presentes os requisitos a que se
refere a Súmula 524 do STF.
Quando o arquivamento é ditado
pela ausência de tipicidade penal do fato sob apuração, a decisão judicial -
porque tem força de definitiva - reveste-se de eficácia preclusiva e obstativa
de ulterior instauração da persecução criminal. Em ocorrendo tal conjuntura, não
há, pois, como cogitar-se de aplicação da Súmula 524 do STF nem tampouco da
providência contemplada no art. 18 do CPP, uma vez que a decisão judicial
fundou-se na inocorrência de infração penal.
A
Suprema Corte, quando do julgamento do HC 80.560/GO, relator o Ministro
Sepúlveda Pertence, já teve a oportunidade de manifestar-se no sentido de que "A
afirmação corrente de que o arquivamento do inquérito ou de diferentes peças
informativas do delito não faz coisa julgada há de ser sempre recebida cum
grano salis, para evitar generalizações indevidas".
Do mesmo sentir, o julgado do
Pretório Excelso por ocasião da apreciação do HC 66.625, no qual, com igual
entendimento, resultou assinalado que o arquivamento fundado na atipicidade do
fato, impede a instauração da ação penal. Na mesma linha de pensamento,
consultem-se os acórdãos constantes das RTJ 127/193 e RT 670/357.
Registre-se, em acréscimo, passagem do voto condutor do Ministro Octávio
Gallotti, por ocasião do julgamento do HC 66.625, quando, examinando caso
concreto, pôs em relevo que, na espécie dos autos, não se punha em dúvida a
prova do fato, mas sim o seu relevo penal. Tal fundamento não é passageiro,
porém essencial e permanente.
A
hipótese assemelha-se à rejeição da denúncia com fulcro no art. 43, I, do CPP,
no qual, igualmente, não se permite que a instância venha a ser renovada.
Há,
porém, uma diferença. É que para a rejeição da denúncia, in casu,
a lei previu recurso específico (art. 581, I, do CPP) para enfrentamento do
decisum.
Recentemente, o Supremo, por ocasião do julgamento do Habeas 84.156-MT,
relator o Sr. Ministro Celso de Mello, voltou a manifestar o mesmo entendimento,
ou seja, a impossibilidade da reabertura da investigação policial no caso de
arquivamento fundado na ausência de tipicidade penal, invocando, por sinal,
abalizado magistério doutrinário .
8.
Não
me foi dado observar em qualquer pronunciamento da Corte Suprema a possibilidade
da interposição de recurso contra a decisão de arquivamento fundada na
atipicidade do fato, muito embora, por seus efeitos, a decisão em questão
tornasse impeditiva a reabertura do feito.
No
entanto, parece-me que o ofendido (8, supra) deva ser intimado para que,
caso deseje, mediante apelo, venha a evitar a eficácia preclusiva do
decisum, valendo-se, para tanto, do recurso de apelação residual
contemplado no art. 593, II, do CPP (12, infra).
9.
Outro
aspecto relevante que o tema envolve reside na circunstância de que o Ministério
Público só deverá requerer o arquivamento com base na atipicidade do fato quando
evidentemente ele não constitua uma infração penal. É que, nesta fase,
vige o princípio do in dubio pro societate, não cabendo ao
Parquet "anistiar" o indiciado, desde que existam, pelo menos, elementos de
informação, por mínimos que sejam, que justifiquem a propositura da ação penal.
Nesse sentido, é bom ter em conta, mais que nunca, a necessidade da observância
do art. 24 do CPP, que consagra o princípio da obrigatoriedade da ação penal.
Ali está dito, de forma bem nítida, que a ação penal pública será
promovida por denúncia do Ministério Público. Não cabe ao Parquet
requerer o arquivamento por razões de política criminal ou de conveniência.
Observe-se, ainda, que, nos casos em que o requerimento de arquivamento
encontrar fundamento na atipicidade penal do fato, justifica-se especial cuidado
na manifestação ministerial tendo em conta o caráter definitivo que o
arquivamento, acaso deferido, trará para o futuro da apuração do evento, não se
lhe aplicando o verbete contido na Súmula 524 do STF.
Dessa
maneira, o arquivamento só poderá ser postulado naquela circunstância quando, de
maneira indiscutível, o fato não constitua infração penal. Tal regramento
defluiu claramente da leitura conjunta dos arts. 24 c/c 43, I, do CPP.
10.
Uma
perplexidade: cabe arquivamento definitivo do inquérito policial com base em
causa excludente da antijuridicidade?
Encontrando-se, sem sombra de dúvida, evidenciada a falta de ilicitude da
conduta, penso ser possível o arquivamento do inqué-rito policial ou da peça de
informação, tendo em conta os dizeres do art. 23 do CP. É que, em tal hipótese,
"não há crime" a ser punido.
Fato
que não constitui crime é simplesmente fato atípico e, em decorrência disto, se
ofertada a denúncia, haveria impossibilidade jurídica do pedido. Ocorreria
carência de ação por parte do Estado, por falta de uma condição para o regular
exercício da ação penal.
Seria
puro exercício de tautologia estar, aqui, a repetir que, in casu,
torna-se exigível que a causa excludente da antijuridicidade resulte demonstrada
de forma inequívoca, impondo o arquivamento. É que, nesta fase, vige o princípio
do in dubio pro republica, razão pela qual se imporá a
apresentação da acusação, caso haja um mínimo de "prova" (rectius,
elementos de informação) aconselhando a propositura da ação penal. O juiz, este
sim, ao sentenciar, deve optar pela aplicação do in dubio pro reo,
absolvendo o acusado caso inexista prova suficiente para a condenação. Note-se
que, em tal emergência, a lei não afirma a ocorrência de falta de prova; esta
pode ocorrer, mas não se apresentar como suficiente para embasar uma
condenação (art. 386, VI, do CPP).
Aliás, o próprio Ministério Público, no decorrer do processo, uma vez concluída
a instrução criminal, deverá requerer a absolvição do réu (art. 385 do CPP),
caso entenda não demonstrada a acusação. Nesta fase, mesmo para o Parquet,
a dúvida resolve-se sempre em favor do acusado.
Além
de tudo o que foi exposto, como poderia o Ministério Público, na causa
petendi que consolida a imputação, descrever o "fato criminoso com todas
as suas circunstâncias" (art. 41 do CPP), caso o inquérito policial (ou
qualquer outra peça de informação idônea) não lhe fornecesse elementos para a
acusação?
11.
Acrescente-se
que nos acórdãos citados, todos emanados do Pretório Maior, consagrando o
arquivamento definitivo por ausência de tipicidade penal, não tive a
oportunidade de constatar qualquer referência à possibilidade da interposição de
recurso (9, supra), quer pelo ofendido, quer por uma das pessoas que
eventualmente possa ter interesse em recorrer da decisão (art. 577, parágrafo
único, do CPP). Repito, porém, que, em razão da eficácia preclusiva da decisão
judicial que determina o arquivamento em virtude de atipicidade penal, torna-se
indispensável que a manifestação do juiz possa encontrar enfrentamento através
do apelo residual, por tratar-se de decisão (não de mero despacho) com força de
definitiva (art. 593, II, do CPP).
É
que, no caso, não há falar em aplicação da Súmula 524 do STF, pois, repita-se
até a náusea, não se encontra em discussão matéria de fato, mas, ao contrário,
questão de direito que encerra, definitivamente, a investigação penal. É
assim que deve funcionar o Estado democrático de direito. Ou não é?
Quando o juiz rejeita a denúncia por entender que o fato narrado não constitui
infração penal (art. 43, I, do CPP), tal decisão pode ser desafiada pelo
Parquet através de recurso no sentido estrito cogitado no art. 581, I, do
CPP.
É bom
que se entenda que o "fato narrado" (art. 43, I, do CPP) tem que encontrar
lastro em elementos de informação mais ou menos precisos, pois a denúncia, como
tantas vezes registrado no decorrer desse estudo, não é obra de criação do
Ministério Público; ela repousa em dados concretos. Sem estes, faltaria
interesse de agir para a imputação.
Por
que razão, então, o ofendido ficaria tolhido de recorrer, tendo em conta que a
decisão judicial, no caso vertente, torna obstativa a ulterior instauração da
persecutio criminis?
Observe-se que o ofendido pode,
em tese, dependendo do caso concreto, vir a ser processado por violação aos
arts. 339 e 340 do CP. Portanto, seu interesse em recorrer não é puramente moral
(o que, por si só, justificaria o apelo), nem a questão que estamos versando
reveste, apenas, interesse acadêmico, caso, por ocasião do arquivamento,
houvesse remessa de peças ao Parquet (art. 40 do CPP) para que se
instaurasse procedimento criminal contra a vítima pela prática daqueles crimes,
com eventuais reflexos civis (ressarcimento do dano) que, daí, poderiam advir.
Mas o
tema é inçado de dificuldades. Explico-me: caso o recurso venha a ser provido
pelo Tribunal, como será possível conciliar o julgado com o sistema acusatório
consagrado na Constituição Federal (art. 129, I, da CF)? Com efeito, ao dar
provimento ao recurso de apelação interposto pelo ofendido, o Tribunal não
estaria violando o princípio do ne procedat iudex ex officio, uma
vez que o Ministério Público, na origem, requereu o arquivamento, que veio a
merecer deferimento pelo juiz do primeiro grau de jurisdição?
Penso
que, ao prover o apelo, o Tribunal deverá simplesmente remeter os autos ao
Procurador-Geral para o fim de que a Chefia do Parquet dê a última
palavra, no sentido de propor ou não a ação penal. Dessa forma não restaria
violado o sistema acusatório e, do mesmo passo, o ofendido não ficaria ao
desamparo.
Tourinho narra hipótese
assemelhada, em seu clássico Processo Penal, em que a posição acima
defendida viu-se acolhida pela Corte Suprema. O caso pode ser assim resumido: o
Promotor requereu o arquivamento de um inquérito e o Juiz acolheu o
pronunciamento do Ministério Público. Como o caso versava a respeito de crime
contra a saúde pública, o juiz recorreu ex officio (art. 7º da Lei
1.521/51). O Tribunal, então, deu provimento ao recurso e determinou fosse
oferecida denúncia. O Promotor ofereceu-a. Em grau de recurso, o réu veio a ser
condenado. O Supremo, apreciando Habeas impetrado, anulou o processo,
sustentando, com inteiro acerto, que a iniciativa da ação penal cabia, com
exclusividade, ao Ministério Público, não podendo o Tribunal obrigá-lo a
oferecê-la.
Daí
que, ao meu pensar, no caso de arquivamento definitivo, em havendo apelação, só
resta ao Tribunal, caso entenda incabível a decisão, remeter os autos ao
Procurador-Geral para que este dê a última palavra a respeito do ajuizamento ou
não da ação penal. Dessa maneira, seria possível conciliar a providência
recursal com o sistema acusatório, tão bem delineado na Carta Magna.
Entendo, ainda, que, em se tratando de arquivamento fundado na atipicidade do
fato, o ofendido ou seu representante legal deverá ser intimado para que, caso
deseje, venha a interpor apelo (art. 798, § 5º, "a", do CPP). Se a vítima houver
falecido ou quando for declarada ausente por decisão judicial, tal direito ao
recurso (que nada mais é que uma ação) poderá ser exercido por seu cônjuge,
ascendente, descendente ou irmão. Estes, porém, não precisarão ser intimados,
até porque não seria possível identificá-los (e, muitas vezes, nem mesmo saber
se existem). Nada impede, no entanto, que uma destas pessoas, tomando ciência da
decisão, venha a recorrer, enquanto a punibilidade do fato não estiver extinta
(art. 798, § 5º, "c", do CPP).
12.
Fizemos
referência (12, supra) ao fato de que não constatamos nas decisões do
Pretório Excelso, vendo como definitivo o arquivamento quando fundado na
atipicidade penal, alusão à possibilidade da interposição de recurso voluntário
pela parte interessada contra a decisão que assim disponha. Até registramos que,
por tratar-se de decisão e não de simples despacho, torna-se necessário
que ela possa ser desafiada por recurso, vislumbrando a apelação cogitada no
art. 593, II, do CPP (apelo residual) como o recurso cabível para o caso, por
tratar-se de decisão com força de definitiva proferida por juiz singular, que
não comporta recurso em sentido estrito. É a única maneira de evitar a
ocorrência da coisa julgada material, a impedir o reexame da matéria.
Porém, há uma outra hipótese a exigir recurso, uma vez que a decisão de
arquivamento não versa a respeito de matéria de fato, impedindo, destarte, a
aplicação da Súmula 524 do STF ou mesmo aquela providência mencionada no art. 18
do CPP. Refiro-me à decisão que julga extinta a punibilidade do fato por uma das
causas enumeradas no art. 107 do CP. Sabe-se que a enumeração em tela não é
taxativa, podendo existir casos outros previstos de forma expressa na lei penal
material (Código Penal) ou, eventualmente, em leis extravagantes.
Aqui, no entanto, a lei processual previu recurso específico para enfrentar o
decisum, estando ele indicado no art. 581, VIII, do CPP, recurso este
que subirá nos próprios autos (art. 583, II, do CPP), comportando, inclusive,
juízo de retratação (art. 589 do CPP). Em tal circunstância o próprio ius
puniendi desaparece. É certo que, na hipótese, não há falar em extinção
do crime, pois este, como fato naturalístico, existiu não podendo desaparecer
através de um passe de mágica. A necessidade e a utilidade da punição é que
perdem sentido. Aliás,
se, naquela circunstância, denúncia fosse oferecida ela deveria merecer rejeição
(art. 43, II, do CPP).
13.
Mas
não é somente pelo fato de que a decisão, como tal, dá margem a recurso, o que
não ocorreria caso estivesse em jogo um mero despacho.
Agora, por força do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, publicado no
Diário Oficial da União, de 9 de novembro de 1992, foi promulgada, entre nós, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de
22 de novembro de 1969. O Governo brasileiro, ao depositar a Carta de Adesão a
esse ato internacional, fez com que ele fique incorporado à nossa legislação.
Dessa forma, por força do art. 8º, 2, "h", o direito ao duplo grau de
jurisdição fica assegurado como garantia judicial, não se concebendo, destarte,
que uma decisão com força de definitiva reste sem submeter-se à reapreciação por
juiz (no caso, Tribunal) mais graduado. Assinale-se, por oportuno, que o
ofendido, eventualmente, pode transmudar-se em acusado (12, supra),
justificando-se, destarte, seu interesse em apelar da decisão.
14.
Pode-se
alinhar, à guisa de conclusão, que a regra geral em matéria de arquivamento de
inquérito policial (ou de qualquer peça de informação) é a provisoriedade da
medida, uma vez que, enquanto não extinta a punibilidade do fato, nos termos do
verbete da Súmula 524 do STF, o feito poderá ser reaberto desde que fato novo
venha a ensejar a providência. Entende-se por fato novo aquele que importe na
alteração substancial do que, antes, fora apurado. Aliás, nos termos do
art. 18 do CPP, a própria autoridade policial, mesmo depois de arquivado o
inquérito policial, pode, caso tenha notícia de outras "provas" proceder a novas
pesquisas, que poderão redundar no desarquivamento. A lei usou a expressão
"outras provas" no sentido comum da palavra "prova", uma vez que na fase
pré-processual há mera colheita de informações.
Em
duas situações, no entanto, o arquivamento torna-se definitivo. Tal se dá quando
ele teve como arrimo a atipicidade do fato ou quando a providência reconheceu a
extinção da punibilidade do fato. Aqui, não há falar na aplicação da Súmula 524
do STF.
Outra
particularidade nestas últimas situações processuais (reconhecimento da
atipicidade do fato ou decretação da extinção da punibilidade) é que a
manifestação jurisdicional não se traduz num mero despacho do juiz acolhendo a
promoção do Ministério Público. Em ocorrendo uma daquelas modalidades de
arquivamento, o juiz prolata uma decisão que desafia recurso da parte que tiver
interesse moral e, eventualmente, interesse material, em ver instaurada a ação
penal.
Se
provida a apelação, para que fique resguardado o sistema acusatório, o Tribunal
deverá remeter os autos ao Procurador-Geral para que ele determine ou não o
ajuizamento da ação penal.
Entendo, ainda, que, nos dois casos, o magistrado que atuou no primeiro grau de
jurisdição ficaria impedido de exercer a jurisdição na ação penal que,
eventualmente, viesse a ser instaurada em razão do desarquivamento ou do
provimento do recurso interposto pelo Ministério Público (art. 581, I, do CPP),
nos termos do art. 252, III, do CPP, observando-se, em relação ao órgão de
atuação do Parquet, no que couber, o mandamento legal contido no art. 258
do CPP.
Notas de Rodapé
1- TOURINHO FILHO,
Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, p. 122, 6ª edição, 2004,
São
Paulo: Ed. Saraiva.
2 Referência
jurisprudencial colhida do Código de Processo Penal Anotado, JESUS,
Damásio E. de, p. 455, Editora Saraiva, 22ª edição, 2005, São Paulo. Naquele
excelente repositório, o verbete usa o vocábulo "decisão", quando,
no meu
entendimento, caso estivesse em jogo uma decisão haveria recurso contra a mesma.
Na hipótese, não há que se falar em recurso, pois a manifestação jurisdicional
de arquivamento fundada na falta de condição exigida em lei para o exercício
da
ação penal consubstancia-se num mero despacho e os despachos, como sabido, não
comportam recurso, salvo quando importarem inversão da ordem legal do processo.
Nessa ocorrência, não de todo rara, haverá a possibilidade da parte prejudicada
interpor Reclamação, que, ainda, terá cabimento nos casos de erro de ofício,
abuso de poder ou omissão dos juízes (art. 219 e segs. do CODERJ). Daí, as
"aspas" colocadas na palavra "decisão".
3 MIRANDA, Darcy Arruda,
in Repertório de Jurisprudência do Código de Processo Penal, v.
IX, p. 143, Editora Revista do Tribunais Ltda., São Paulo, 1963.
4 Para um exame mais
detalhado a respeito do interesse de agir no processo penal, o eventual leitor
encontrará algumas observações em meu artigo "Breves anotações sobre
o interesse de agir no processo penal", na Revista Lições de Direito,
v. 2, p. 213 e seguintes, publicação da UniverCidade Editora - Rio de Janeiro,
2005.
5 Todos
os julgados transcritos no item 08 foram extraídos do Habeas Corpus
nº 84.156-MT, relator o Sr. Ministro Celso de Mello, em acórdão publicado
na
Revista Trimestral de Jurisprudência de nº 193, p. 648 e seguintes.
6 PITOMBO, Sérgio
Marcos de Moraes. Inquérito Policial: Novas Tendências, p. 25/27 e
33/34, itens ns. 7 e 10, IASP/CEJUP, 1986.
7 A
jurisprudência
aponta a hipótese, cuidando de legítima defesa, em decisão emanada do TACrimSP,
RT 413/300, apud op. cit. in nº 2, dessas notas, p. 38.
8 TOURINHO FILHO,
Fernando da Costa, Processo Penal, v. 1, p. 416, São Paulo: Editora
Saraiva, 2003.
9 Sobre
o thema, podem ser consultados, entre outros HUNGRIA, Nelson (apud GARCIA,
Basileu, Instituições, t. 2, p. 654), o próprio GARCIA,
Basileu, na obra citada, p. 655, MARQUES, José Frederico (Curso, v.3,
p. 401) apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa (in,
Processo Penal, v. 1, p. 541/542, 25ª edição, 2003, São Paulo).
Nem sempre, no
ocidente católico, a própria morte do réu extinguia a punibilidade. O "Santo
Ofício da Inquisição" previa o anátema à memória do morto, declarando ser ele
herege, a merecer por isso, as punições previstas. Conseqüência dessa condenação
eram a exumação e a cremação do cadáver ou o traslado do corpo para fora de
cemitério consagrado. Em casos de confisco dos bens do morto, ele poderia ser
feito até 40 anos depois do óbito. Os herdeiros, mesmo se fossem católicos,
seriam despojados dos bens do herege em proveito do fisco eclesiástico ou civil.
Os filhos dos hereges seriam declarados infames e inaptos para o exercício de
qualquer cargo público. O "processo" contra um morto - que, por definição, não
podia ser citado - seria instaurado desde que se tratasse de um delito de
lesa-magestade divina. Para um completo exame do assunto, consulte-se o "Directorium
Inquisitorum" (Manual dos Inquisidores, p. 198, escrito por EYMERICH,
Nicolau em 1376, revisto e ampliado por LA PEÑA, Francisco, em 1578, ambos
inquisidores, integrantes da Ordem dos Pregadores, Editora Universidade de
Brasília, 1993).
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