O Mandado
(Humberto de Campos)
Naquela tarde tranqüila
de feriado, com o centro da cidade quase
deserto, conversavam, parados, na confluência
da rua Gonçalves Dias com a da Carioca,
no Rio de Janeiro, dois juízes e
um dos mais conhecidos escrivães
do Foro local. Velho amigo do escrivão
e de um dos magistrados, fui, por eles,
apresentado ao outro . E a palestra que
ali os retinha, tomou o caráter de
depoimento, em que a Justiça, submetida
a inquérito, passou a prestar esclarecimentos
ao réu.
- A propósito
dos seus comentários em torno dos
nossos problemas sociais – disse-me
o juiz a quem acabava de ser apresentado
pelos dois amigos comuns, - eu tenho um
caso curioso, que pode constituir matéria
para uma crônica. É um documento
concreto, um episódio trágico,
em que uma filha inocente paga, num processo
de desquite judicial, a culpa dos pais.
Voltou-se para os
companheiros de Foro :
-
Eu já contei a vocês o caso
... Não?
-
Já, - respondeu um deles.
-
É horrível, - observou o outro.
O
jovem magistrado começou :
- Há meses,
já, foi-me distribuída uma
petição em que um casal requeria
desquite, amigável. Tinha uma filha
de dezessete anos, e, pela combinação
havida entre os requerentes, a moça
deveria ficar com a mãe. No correr
do processo, porém, surgiram desinteligências,com
acusações à senhora
, e o desquite amigável é
convertido em ação judicial,
na qual o marido teve ganho de causa, em
instância superior, ficando estabelecido,
na sentença, que a moça, filha
do casal, que até então vivera
com a mãe, passasse a viver na companhia
do pai. A moça era, parece, doente,
franzina, exigindo cuidados maternos. A
lei é cega, porém, a essas
particularidades
. A Justiça tem na mão uma
espada, quando devia ter, no lugar desta,
um coração.
- A sua figura simbólica
devia ser, nesse ponto, como a imagem do
Coração de Jesus ... –
aparteou o escrivão, com acento católico.
O juiz reatou :
- Diante da sentença,
e estribado nela, o pai requereu a entrega
da moça, alegando que a mãe
a retinha, contra decisão da Justiça.
A senhora entrou com uma petição,
informando que a filha estava enferma, e
carecia dos seus cuidados. Tratava-se de
uma criatura que jamais gozara saúde
perfeita., e cujo estado se havia agravado
com aquela dissensão doméstica
. Terminava comprometendo-se a entregar
a rapariga ao pai, assim que ela se restabelecesse,
e pudesse dispensar a sua assistência
de mãe. O pai revidou. O pedido não
passava, dizia ele, de um pretexto da esposa
culpada,para reter a filha , contra a decisão
da Justiça. Pedia, em conclusão,
que o Juiz expedisse o mandado.
- Era obrigado a
isso, - interveio o outro magistrado. –
Era dever, que a lei impunha.
O outro reatou :
- Os oficiais de
Justiça incumbidos de intimar a senhora
a fazer a entrega da filha, procuraram-na
na sua residência. A criada , única
pessoa que ali se encontrava, informou que
a moça, e a mãe, haviam sido
removidas, naquela manhã, para uma
Casa de Saúde. Os oficiais foram
à Casa de Saúde que lhes havia
sido indicada, e fizeram a intimação.
A mãe, aflita, explicou-lhes a impossibilidade
de entregar a rapariga : esta se achava
em estado grave, e ia ser operada. Não
tinha tranqüilidade, sequer, para chamar
o seu advogado. E os oficiais de Justiça
regressaram com essa informação.
O jovem homem da
lei reatou :
- O esposo desta
senhora intimada era, porém, um desses
homens violentos e voluntariosos, que não
admitem restrições à
sua vontade. Achou que a mulher estava protelando
o cumprimento da sentença, irritou-se
e resolveu ir até o fim. Requereu
a posse da menor, e a sua transferência
para outra Casa de Saúde, onde se
encarregaria do seu tratamento. Despachada
a petição favoravelmente,
os oficiais de Justiça voltaram à
Casa de Saúde em que a moça
se encontrava internada.
3 Levaram ordem de promover a sua remoção
imediata. E regressaram sem cumprir o mandado;
a moça havia sido operada naquela
manhã mesma, de um tumor no intestino!
- Horrível,
tudo isso, - aparteei.
- É horrível,
e, no entanto, ainda não é
tudo , - volveu o magistrado.
E continuou :
- Por essa altura,
o pai da moça, que é um comerciante
estrangeiro, havia perdido, já, o
resto da calma, e não atendia mais
nem aos conselhos do seu próprio
advogado. Entrou com nova petição.
Que lhe fosse entregue a filha, mesmo na
Casa de Saúde em que a haviam internado.
Era direito seu, ir para seu lado no momento
em que ela se encontrava em perigo de vida.
Os oficiais correm à Casa de Saúde.
Informaram-lhes que a família não
está mais ali. Encaminharam-se para
a casa da senhora desquitada, aonde tinham
ido à primeira vez. A mãe
da rapariga veio à porta, atendê-los.
Tinha os olhos inchados, de pranto e de
insônia. –“Tenho ordens
rigorosas, minha senhora, - disse um deles,
- para fazer a apreensão da sua filha.
Aqui está o mandado”. –
“Pois não, - respondeu a mãe;
- a ordem que os senhores receberam será
cumprida”. – Foi ao interior
da casa. Trouxe o mandado com o “ciente”.
– “Podem entrar”, - disse.
Os oficiais subiram a pequena escada , e
ela empurrou a porta da sala. – “Façam
favor”, insistiu.
E o magistrado terminou,
após haver tirado do bolso o seu
lenço :
- Na sala vazia,
havia um caixão branco, em torno
do qual ardiam quatro círios ...
O narrador tinha
os olhos vermelhos. Nós também.
Era, com certeza, a fumaça da poluição
...
Fonte : Biblioteca da Língua Portuguesa
4º. Volume – fls. 176/180
Professor Alpheu Tersariol
Empresa Editorial
Irradiação Ltda. ,1964
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