“E será minha culpa, se assim é?”
(Maquiavel)
Sumário. I. A Jurisprudência. II. Extensão da falência no Direito pátrio. III. Extensão dos efeitos jurídicos da falência às sociedades do mesmo grupo econômico. IV. Grupo de sociedades. V. Desvirtuamento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. VI. Responsabilidade da sociedade controladora.
- I -
A Jurisprudência
Os Tribunais de Justiça do país têm decidido que deve “estender-se a falência”, ou “os efeitos jurídicos da falência”, “às sociedades do mesmo grupo” se ficar provado abuso da personalidade jurídica da sociedade falida para fraudar a lei, violar contratos ou prejudicar os direitos e interesses de credores, consoante se verifica do v. acórdão da colenda Terceira Turma do STJ, Rel. Min. CASTRO FILHO, no julgamento do REsp. nº 228357-SP: “O síndico da massa falida, respaldado pela Lei de Falências e pela Lei nº 6024/74, pode pedir ao juiz, com base na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que estenda os efeitos da falência às sociedades do mesmo grupo, sempre que houver evidências de sua utilização com abuso do direito, para fraudar a lei ou prejudicar credores”.
Por igual, o v. acórdão da mesma egrégia Terceira Turma do STJ, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, no julgamento do ROMS 14168/SP: “Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Falência. Grupo de sociedades. Estrutura meramente formal. Administração sob unidade gerencial, laboral e patrimonial. Desconsideração da personalidade jurídica da falida. Extensão do decreto falencial às demais sociedades do grupo. Possibilidade. ... Pertencendo a falida a grupo de sociedades sob o mesmo controle e com estrutura meramente formal, o que ocorre quando as diversas pessoas jurídicas do grupo exercem duas atividades sob unidade gerencial, laboral e patrimonial, é legítima a desconsideração da personalidade jurídica da falida para que os efeitos do decreto falencial alcancem as demais sociedades do grupo. Impedir a desconsideração da personalidade jurídica nesta hipótese implica prestigiar a fraude à lei ou contra credores. A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma para tal. Verificados os pressupostos de sua incidência, poderá o juiz, incidentemente no próprio processo de execução (singular ou coletiva), levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens particulares de seus sócios, de forma a impedir a concretização de fraude à lei ou contra terceiros. Os terceiros alcançados pela desconsideração da personalidade jurídica da falida estão legitimados a interpor, perante o próprio Juízo Falimentar, os recursos tidos por cabíveis, visando à defesa de seus direitos”.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica também tem servido de fundamento para a extensão dos efeitos jurídicos da falência de uma sociedade para outra do mesmo grupo econômico quando restar demonstrado:
(a) haver confusão patrimonial entre sociedades grupadas com caixa único e utilização de idênticas instalações e pessoal;
(b) uso de diferentes denominações sociais e uma só pessoa jurídica;
(c) ter havido transferência de ativo da falida a preço vil para sociedade controladora ou controlada do mesmo grupo;
(d) serem sociedades controladas e administradas pelas mesmas pessoas, em geral da mesma família, etc.
Embora louvável o propósito de coibir abusos do controlador de grupo de sociedades de fato ou de direito causadores de prejuízos a credores, impõe-se rever e discutir, com profundidade, independência e espírito crítico, a orientação dominante da jurisprudência, eis que existem dispositivos na LSA e na LRFE que alcançam idênticos objetivos sem “quebrar”, indevidamente, sem previsão e amparo legal, nenhuma sociedade do grupo econômico ao qual pertença a sociedade falida.
- II -
Extensão da falência no direito pátrio
O D.L. nº 7.661, de 1945, não admitia a extensão da falência de uma sociedade para outra nem mesmo nas hipóteses de sociedades com sócios solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais, isto é, não havia previsão de extensão da falência:
(a) das sociedades em nome coletivo para seus sócios (art. 316, do revogado Código Comercial; art. 1039, do Código Civil);
(b) das sociedades de capital e indústria aos sócios capitalistas (art. 317, do Código Comercial de 1850);
(c) das sociedades irregulares e de fato aos seus sócios (arts. 301 e 304, do extinto Código Comercial);
(d) das sociedades em comandita simples aos sócios solidariamente responsáveis pelas dívidas sociais (art. 311, do Código Comercial; art. 1045, do Código Civil) e
(e) das sociedades em comandita por ações aos sócios diretores (arts. 280 a 284, da LSA, e 1090 a 1092, do Código Civil).
Em lamentável retrocesso, a Lei nº 11.101, de 2005, — a LRFE — estabelece, no art. 81, e exclusivamente na hipótese nele especificada, por tratar-se de norma excepcional, que não autoriza nem interpretação analógica nem extensiva, que “a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falências destes”, o que jamais se dá em um grupo de sociedades, sempre constituído apenas e tão somente por sociedades cuja responsabilidade dos sócios é limitada.
- III -
Extensão dos efeitos jurídicos da falência
a sociedades do mesmo grupo econômico
A partir do art. 5º, do D.L. nº 7.661, de 1945, que sujeitava os “sócios solidários ilimitadamente responsáveis pelas obrigações sociais aos demais efeitos jurídicos que a sentença declaratória produza em relação à sociedade falida”, e, sobretudo, fundada na teoria da desconsideração da personalidade jurídica do ente moral, mesmo antes do Código Civil de 2002, a jurisprudência, em casos especialíssimos, marcados por atos fraudulentos de várias naturezas e espécies, praticados com o evidente fim de burlar a lei e lesar credores, passou a admitir a extensão dos efeitos jurídicos da falência de uma sociedade para outra ainda que não se tratasse de sócios solidária e ilimitadamente responsáveis pelas obrigações e dívidas da falida (REsp. nº 63.652, Rel. Min. BARROS MONTEIRO, da Quarta Turma do STJ).
Na prática, “estender a falência” ou “estender os efeitos jurídicos da falência” de uma sociedade a outra traz idênticas conseqüências jurídicas, econômicas, administrativas e políticas, pois:
(a) a sociedade, para a qual foram estendidos os efeitos, tem seu estabelecimento lacrado, suas atividades paralisadas e seus bens e direitos arrecadados, custodiados e avaliados;
(b) seus administradores perdem o direito de gerir os bens sociais e deles dispor, sendo imediatamente afastados da direção da sociedade e substituídos pelo administrador judicial;
(c) as dívidas da sociedade se vencem antecipadamente;
(d) os administradores da sociedade ficam sujeitos aos deveres prescritos no art. 104, da LRFE, etc.
- IV -
Grupo de sociedades
Em 1978, no livro “Grupo de Sociedades”, escrevi: “O grupo de sociedades é uma técnica de gestão e de concentração de empresas, que faz nascer um interesse novo, externo e superior ao de cada uma das sociedades isoladas, o qual, muitas vezes, não coincide nem com os interesses perseguidos pela sociedade dominante, nem com os propósitos das sociedades dominadas.
As sociedades componentes do grupo, mantendo, cada uma, personalidade e patrimônio próprios e autônomos, ao invés de constituírem uma nova entidade econômico-financeira, reúnem-se sob uma direção única, para, somando esforços e valores de várias naturezas, alcançar objetivos comuns, as mais das vezes de difícil consecução pelas sociedades isoladas. Não obstante concentradas em grupo, preservam, em princípio, seu objeto social e seus órgãos diretivos.”
Em 1988, no artigo “Grupo de Sociedades”, reproduzi o pensamento de FRAN MARTINS: “o que caracteriza um grupo de sociedades é o fato de constituir ele um conjunto de sociedades juridicamente independentes mas economicamente unidas”, segundo “um princípio hierárquico”, em que conservam “sua personalidade moral própria sob a dominação, sob a direção comum, de um mesmo sujeito de direito” (Comentários à Lei das S.A., Forense, 1979, vol. 3º, p. 420, n. 1.118).
Em 1998, no estudo “Direito dos Grupos de Sociedades”, ressaltei: “Numa economia capitalista, caracterizada pela livre, acirrada e, por vezes, desleal concorrência, não apenas a empresa precisa constantemente desenvolver-se (expansão interna), como, por igual, concentrar-se (expansão externa), com o escopo de aumentar a produção e conquistar consumidores, sobretudo em diferentes países e, até mesmo, em diversos continentes.
A internacionalização e a interdependência dos mercados, no que se convencionou denominar de “globalização da economia”, induzem, quiçá impõem, as empresas, até então preparadas para atenderem apenas a uma demanda local, regional ou nacional, a se expandirem internamente, quer através de recursos financeiros de seus próprios acionistas ou dos investidores do mercado de capitais (aumento de capital mediante subscrição pública de ações ou lançamento público de debêntures conversíveis em ações), quer através de autofinanciamento (aumento de capital mediante capitalização de lucros e reservas), quer através de fusões e incorporações, com o objetivo de, modernizando os processos técnicos de administração, fabrico e distribuição de produtos e serviços, ‘torná-las’, destaca GALBRAITH no livro “O novo Estado Industrial”, ‘dinâmicas, maciçamente capitalizadas e altamente organizadas, para obter maior produtividade e maiores lucros com menores custos de produção’, o que culminará por transformá-las, acentua ALVIN TOFFER na obra “Empresa Flexível”, em ‘empresas com nomes consolidados e produtos famosos; empresas com patrimônios que se elevam a bilhões de dólares; empresas com dezenas e até centenas de milhares de empregados; empresas de reputação invejável em Wall Street e com posições aparentemente inexpugnáveis em seus mercados’.
Mas, na “Era da Incerteza”, não é suficiente a empresa atingir a sua “dimensão ótima”, não basta, declara GALBRAITH, ‘estar em evidência tanto em Hong Kong e Singapura como em Nova Iorque, Bruxelas ou Madri’, para manter-se competitiva, porquanto, nesse estágio de seu desenvolvimento, faz-se necessário que a empresa se expanda externamente, sob pena até mesmo de perecer.
A experiência demonstra que a expansão interna da empresa provoca problemas de ordem (a) administrativa, (b) financeira e (c) jurídica, pois torna-se difícil (a’) assegurar uma gestão eficiente e rentável, (b’) garantir vultosos recursos financeiros, indispensáveis ao seu pleno desenvolvimento, e (c’) coibir abusos, sobretudo os ligados ao direito da concorrência, o que levou administradores, economistas e advogados a criarem mecanismos que permitam à empresa continuar a crescer, não mais apenas internamente, em especial através dos processos de fusão e de incorporação de companhias concorrentes, que levam à concentração primária ou concentração na unidade, em que há perda da autonomia jurídica e econômica, mas através da expansão externa.
A expansão externa da empresa moderna aperfeiçoa-se através da aquisição do controle societário (a) de empresas congêneres, formando-se um grupamento horizontal, e (b) de empresas fornecedoras de matéria-prima e de distribuição de produtos, fazendo surgir um grupamento vertical, ambos ensejando o fenômeno da concentração na pluralidade ou do grupo de sociedades, em que se mantém a autonomia jurídica, mas perde-se a independência econômica e patrimonial.”
Essa opinião, pacífica entre os estudiosos do grupamento de sociedades, é reiterada, entre muitos outros autores de nomeada, pelo Prof. Dr. JOSÉ AUGUSTO Q. L. ENGRÁCIA ANTUNES, Mestre em Direito pela UPC de Lisboa e Doutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu, Florença, ao enfatizar que os elementos característicos dos grupos de sociedades são “a independência jurídica das sociedades integrantes e a unidade de direção econômica das entidades integrantes.” (grifos do original)
Hoje, como há trinta anos, após ler e reler as obras e estudos de CL. CHAMPAUD, G. KEUTGEN, R. RODIERE, P. SANDERS, RAFAEL M. MANÓVIC e JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, estou convencido de que as sociedades grupadas, quer pertençam a grupos de fato, quer a grupos de direito, se mantêm, sob o aspecto jurídico, independentes e autônomas umas das outras, por força do instituto da personificação, extraordinária conquista da Ciência Jurídica, que os operadores do Direito, em suas diversas áreas de atuação, têm o dever de preservar em toda sua plenitude e grandeza e, por conseguinte, o dever de insurgirem-se contra o desvirtuamento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica, sobretudo quando ela é empregada para “estender a falência” ou “estender os efeitos jurídicos da falência”:
(a) de controladora para sociedades controladas ou coligadas;
(b) de controlada para outras controladas ou coligadas;
(c) de coligada para suas controladoras e demais sociedades do mesmo grupo, e, inclusive, como in casu,
(d) de sociedade controlada para sua controladora.
- V –
Desvirtuamento da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica
É curial, conforme doutrina pacífica, exposta, com brilho, pelo preclaro Prof. ARNOLDO WALD, que, “tanto a sociedade se distingue dos sócios, como cada um dos sócios, em particular, não se confunde com a sociedade, não podendo arcar com responsabilidade ou sofrer desvantagens decorrentes de atuação da empresa... A criação da pessoa jurídica implica na estruturação de um novo sujeito de direito, com condições e peculiaridades que o separam de todos os demais, e que, segundo a melhor doutrina, é autônomo em relação ao seu substrato”, arrematando, com estas palavras categóricas: “reconhecemos, pois, que os interesses da pessoa jurídica não se confundem com aqueles que pertencem aos seus sócios (Pessoas Jurídicas)”, pensamento partilhado por Caio Mário da Silva Pereira e Orlando Gomes, entre inúmeros outros doutrinadores nacionais e estrangeiros.
Por isso, pode-se afirmar que, em decorrência do instituto da personificação:
(1º) a sociedade possui individualidade própria, distinta e autônoma, inconfundível com a dos seus sócios ou acionistas;
(2º) a sociedade possui capacidade jurídica própria, autônoma e distinta, inconfundível com a capacidade jurídica dos seus sócios ou acionistas;
(3º) a sociedade possui patrimônio próprio, distinto e autônomo, inconfundível com o patrimônio dos seus sócios ou acionistas;
(4º) os sócios ou acionistas não podem ser responsabilizados perante terceiros por obrigações e dívidas da sociedade;
(5º) enfim, há uma nítida, óbvia e inconteste distinção entre a personalidade da sociedade e a dos seus membros, quer a consideremos como uma unidade isolada, quer a consideremos como uma sociedade integrante de um grupo de sociedades de fato ou de direito, razão pela qual permanece, sobranceiro e intocado, no que tange ao direito positivo dos povos cultos, o princípio universitas distat a singulis, pois a personalidade jurídica acarreta a distinção plena e absoluta entre os direitos e as obrigações da sociedade e os dos sócios ou acionistas, que a compõem.
Contudo, frise-se, excepcionalmente, a autonomia jurídica da sociedade pode ser afastada, se e quando provado, (a) fraude à lei, (b) violação de norma contratual, (c) abuso de direito e (d) desvio da personalidade jurídica da sociedade, conforme restou demonstrado na magistral sentença do douto juiz ANTÔNIO PEREIRA PINTO, ao ressaltar que “os tribunais germânicos, baseando-se nos conceitos de ‘boa-fé’, de ‘poder dos fatos’, de ‘realidade da vida’, de ‘natureza das coisas’, de ‘consciência popular dominante’ e, por vezes, aludindo às ‘exigências ou necessidades econômicas’, resolviam, por equidade, em casos isolados, deixar de lado a personalidade jurídica da sociedade, desconhecendo-a ou dela fazendo omissão, para investigar a situação real das coisas, os fatos e as pessoas que lhe servem de suporte”.
No direito americano, essa doutrina recebeu a designação de disregard of legal entity e se converteu em instituto consolidado em matéria de direito de sociedades, a ela devendo recorrer o juiz quando “a sociedade está sendo utilizada fraudulentamente para a violação de um contrato a que se vinculou o acionista majoritário”, pois, “se um devedor tenta subtrair-se de uma obrigação de fazer ou não fazer que assumiu, deixando ou fazendo com que uma pessoa jurídica atue em seu lugar, encontramo-nos em face de uma hipótese que equivale à tentativa de burlar a lei com a interposição da pessoa jurídica”, acrescentando mais: “se pessoa natural contraiu determinada obrigação de fazer ou não fazer, não pode subtrair-se ao seu cumprimento por via de sua ocultação atrás de uma sociedade anônima, pois, se tal ocorrer, o juiz, entendendo que a estrutura formal da pessoa jurídica foi utilizada de maneira abusiva, prescindirá da regra fundamental que estabelece a separação radical entre a sociedade e os sócios, a fim de que não vingue o resultado contrário ao direito que se tem em vista”, eis que pode ser negada a personalidade da corporation quando o que se pretende, por meio dela, é violar uma obrigação contratual.
Destarte, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa jurídica pode e deve ser aplicada pelo juiz, em caráter excepcional, em casos especialíssimos, sempre que o sócio ou acionista controlador, para subtrair-se a uma obrigação de fazer ou não fazer, inerente ou decorrente de uma relação contratual, usar, fraudulentamente, a sociedade controlada em prejuízo de terceiros.
Quanto à aplicação da teoria de desconsideração nas hipóteses de fraude à lei, abuso de direito e desvio da personalidade jurídica, a doutrina nacional, à frente J. Lamartine Correa de Oliveira, Rubens Requião, Fábio Konder Comparato, Marçal Justen Filho, Calmon de Passos, Arnoldo Wald, Luiz Roldão de Freitas Gomes, dentre outros, e a jurisprudência têm, também, pacificamente, posto de lado a personalidade da pessoa jurídica para punir o sócio ou acionista, que usou, fraudulentamente, a sociedade controlada em prejuízo de terceiros.
É claro que, se o sócio ou acionista controlador for pessoa jurídica, não se deve decretar a sua falência ou a extensão dos efeitos da falência da controlada à controladora, nem lacrar os estabelecimentos da controladora, nem encerrar suas atividades, nem “torrar” em público leilão os bens integrantes do seu ativo, porquanto não é este o escopo da teoria da desconsideração, nem a finalidade do art. 50, do Código Civil, mas pura e simplesmente co-obrigá-la à completa e total reparação dos danos provocados ao patrimônio de terceiros.
Com efeito, ensina o Prof. Fábio Konder Comparato, ao comentar o art. 50, do Código Civil, e todos os estudiosos da matéria, a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica não leva à liquidação ou à despersonalização da pessoa jurídica, mas exclusivamente à “extensão dos efeitos aos bens particulares do sócio”.
Não leva à liquidação, nem à despersonalização, nem à falência ou à extensão dos efeitos jurídicos da falência porque não é este o escopo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, eis que, repita-se, de novo e sempre: o Código Civil, no art. 50, ao admitir “descortinar-se o véu”, busca alcançar e tornar o sócio ou acionista controlador da sociedade falida solidária e ilimitadamente responsável pelo ressarcimento dos prejuízos causados aos credores, coibindo a fraude, em qualquer de suas nefastas formas, e punindo o sócio ou acionista, que praticou ato ilícito ou abusou da personalidade da sociedade, jamais “quebrar” uma sociedade empresária em dia com suas obrigações e dívidas!
Mas, há de indagar-se: o sócio ou acionista controlador da falida, pessoa física ou jurídica, que urdiu a trama fraudulenta, ficará livre para gastar o produto da fraude, do ilícito?
Evidentemente que NÃO!
Evidentemente que deve ser punido; todavia, não através do desvirtuamento da teoria da desconsideração, mas de normas cogentes, de redação cristalina, do Código Civil, da LSA e da LRFE.
- VI -
Responsabilidade da sociedade controladora
Para responsabilizar sociedade controladora de sociedade controlada falida não se pode e não nem se deve estender os efeitos jurídicos da falência da sociedade controlada à controladora, porém aplicar o art. 82 da atual Lei de Falências, cuja redação se assemelha à do art. 6º, do D.L. nº 7.661, de 1945, verbis:
“Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para coibir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil”.
Cotejados o art. 6º, do D.L. nº 7.661, de 1945, com o art. 82, da LRFE, notar-se-á um “pequeno grande” acréscimo: enquanto a LF, de 1945, se limitava a tratar da responsabilidade de “diretores das sociedades anônimas e dos gerentes das sociedades por cotas de responsabilidade limitada”, sem atingir os sócios ou acionistas controladores da falida, a LRFE engloba “sócios de responsabilidade limitada, os controladores e administradores da sociedade falida”, a todos tornando responsáveis pessoal, solidária e ilimitadamente pelos efeitos jurídicos da falência da empresa que controlam e administram.
A solução está também na LSA, nos arts. 116 e 117, que tratam, respectivamente, do conceito de sócio ou acionista controlador e da responsabilidade do controlador por atos praticados com abuso de poder, além, por óbvio, no Código Civil, art. 50, que “positivou” a teoria da desconsideração.
Por conseguinte, havendo, no direito positivo brasileiro, em três leis importantíssimas — o Código Civil, a LSA e a LRFE — previsão legal para examinar, discutir e decidir sobre a prática de atos atentatórios aos direitos e interesses de terceiros praticados por sociedade controladora ao “usar” ilegalmente sociedade controlada, não se deve aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para estender os efeitos jurídicos da falência de uma sociedade a outra, mas, exclusivamente, ir contra a sociedade controladora da falida para apurar a sua responsabilidade e puni-la, se for o caso.
Em resumo e em conclusão:
(1º) não se pode, por absoluta falta de amparo legal, “estender a falência” ou “estender os efeitos jurídicos da falência” de sociedade controlada à sociedade controladora;
(2º) não se deve, sob pena de desvirtuá-la e ferir o art. 50, do Código Civil, fundar na teoria da desconsideração da personalidade jurídica a extensão dos efeitos jurídicos da falência de controlada à controladora.
Pode-se e deve-se, entretanto:
(1º) com fundamento no art. 117, da LSA, no art. 50, do Código Civil, e no art. 82, da LRFE, buscar a reparação integral dos danos causados por sociedade controladora à sociedade controlada falida, aos acionistas minoritários e preferencialistas da controladora e da controlada falida e aos credores da falida e
(2º) com fundamento no § 2º, do art. 82, da LRFE, para impedir a dilapidação dos bens sociais e garantir o cabal ressarcimento dos prejuízos, requerer, desde logo, na petição inicial da ação ordinária de perdas e danos, a “indisponibilidade dos bens particulares dos réus”, rectius, da sociedade controladora, observados os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
I - Ed. Forense, 1978, p. 31/32.
II - RT, 1988, vol. 636, p. 29/30
III - Revista Forense, 1998, vol. 341, p. 90/92.
IV - “Os Grupos de Sociedade”, Ed. Almedina, 1993, p. 26.
V - “Direito Comercial , Estudos e Pareceres”, Ed. RT, 1979, p. 217/ 218.
VI - Caio Mário da Silva Pereira, confessando-se adepto da teoria da realidade técnica, assegura que as sociedades, dotadas de personalidade, são “providas de capacidade e de existência independente... sujeitos ativo e passivo de relações jurídicas ... titulares de seus próprios direitos”. (Instituições de Direito Civil, Forense, 1961, v. I/219).
VII - Orlando Gomes, após chamar a atenção para o fato de que “não são apenas as pessoas naturais que podem ser sujeitos de direito”, proclamou que as sociedades são “entes formados pelo agrupamento de homens, para fins determinados, adquirem personalidades distintas dos seus componentes. Reconhece-lhes a lei capacidade de ter direito e contrair obrigações”. (Introdução ao Direito Civil, Forense, 1971, p. 174).
VIII - Revista Forense, 133/269
IX - Revista Forense, 133/269. Consulte-se a propósito: Rolf Serick, “Aparencia y realidad en las sociedades mercantiles: el abuso de derecho por médio de la persona jurídica”, Ediciones Ariel, Barcelona, 1958, p. 94 e nota 25; J. M. Wormser, “piercing the Veil of Corporate Entity”, 12, Columbia Law Review, 1942, 496; J. Wormser, “Disregard of the corporate Fiction and Allied Corporation Problems: Nova Iorque, 1927; Henry W. Ballantine, “Manual of corporation Law practice”, Chicago, 1930, § 122, pp. 292 e ss.; Henry W. Ballantine, “Disregrading the Corporate Entity as a Regulatory Process”, Califórnia Law Review, 1943, citados por Antonio Pereira Pinto, loc cit.
X - Antonio Pereira Pinto, art. cit., p. 276.
XI - Antonio Pereira Pinto, art. cit., p. 277.
XII - Antonio Pereira Pinto, art. cit., p. 277.
XII - Apud CAIO MARIO, ob. e vol. cits., p. 339.
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