Sumário. 1. As hipóteses de lesões leves e de vias de fato no Juizado Especial Criminal. Procedimento sumaríssimo. 2. A Lei nº. 11.340/06 e certos obstáculos à sua aplicação. Os seguidos termos circunstanciados de ocorrência (TCO) até que a parte manifestasse interesse e ficasse decidido se o feito deveria seguir para o Juizado Especial. O art. 41 da Lei e a não aplicação da Lei n.9.099/95. A contravenção de vias de fato. A necessidade de serem criadas delegacias especializadas de mulheres, adidas aos Juizados Especiais.
De todas as alterações legislativas introduzidas na área criminal nos últimos anos, a Lei “Maria da Penha” é certamente a que vem gerando as maiores angústias aos operadores do direito. Advogados, delegados de polícia, promotores e juízes vêm encontrando sérias dificuldades em sua aplicação, e a matéria ainda vai suscitar tormentosas dúvidas até que a jurisprudência se assente. Enquanto isso não ocorre, surgem soluções paliativas, que, muitas das vezes, têm origem em interpretações apressadas e pouco cautelosas dos dispositivos da Lei.
É certo que a Lei 11.340/06 não pode ser classificada como um bom exemplo de técnica legislativa, como também é correto afirmar que ela encontra sérios obstáculos à sua aplicação prática. Não obstante, apesar de suas imperfeições, o ordenamento jurídico nacional carecia de um instrumento capaz de tutelar os interesses de mulheres em situação de violência doméstica, e, nesse sentido, a Lei, se aplicada corretamente e com seriedade, poderá se tornar um instrumento idôneo para alcançar esse fim.
Aliás, entendemos que as medidas protetivas introduzidas pela nova lei não se prestam somente à tutela de interesses das mulheres em situação de violência; as medidas podem ser aplicadas analogicamente nas mais diversas situações, uma vez que o poder geral de cautela do juiz permite essa aplicação, mas essa idéia ainda será abordada e discutida em outro artigo. Por hora, nos concentraremos em dois problemas específicos, que surgiram, logo de início, quando iniciada a aplicação da lei: a possibilidade de utilização do procedimento sumaríssimo e a necessidade de representação da vítima na hipótese de lesões corporais leves e de vias de fato.
Quando da sua entrada em vigor, nós, delegados de polícia, fomos surpreendidos pelo volume de trabalho que, de súbito, passou a aportar em nossas mesas. Como é comum em nosso país, as instituições não se preparam previamente para as alterações legislativas. Mesmo quando o legislador expressamente prevê a vacatio no texto legal, as instituições, ainda assim, encontram dificuldades de se organizarem, adaptando-se ao novo panorama jurídico.
No caso da Lei “Maria da Penha”, a situação não foi diferente. É verdade que o prazo de vacatio proporcionado pelo legislador, 45 dias, não foi suficiente para implementar todas as modificações propostas pela lei. Tal justificativa, contudo, não afasta a responsabilidade das instituições, uma vez que, mesmo bem antes de sua publicação, durante o trâmite do projeto de lei, já é possível vislumbrar a necessidade de adaptação, criando-se mecanismos para minimizar os problemas criados pela futura alteração legislativa.
Em Minas Gerais, na capital e em várias comarcas do interior do Estado, já havia delegacias especializadas de repressão aos crimes contra a mulher. Contudo, no caso específico de Belo Horizonte, as atribuições da Delegacia Especializada, bem como sua estrutura, estão aquém das necessidades impostas pelo novel diploma legal. Isso impõe a distribuição de parte das atribuições às delegacias distritais, que carecem ainda mais de estrutura especializada no tratamento de um assunto tão delicado.
A primeira dificuldade encontrada pela autoridade policial, quando do advento da lei 11.340/06, foi saber de quem era a competência para a sua aplicação. Vários Termos Circunstanciados de Ocorrência foram elaborados, notadamente quando as vítimas compareciam à delegacia após intimação, relatando uma conduta de vias de fato e manifestando seu desinteresse no prosseguimento do feito.
Casos há, considerando que o procedimento de registro de ocorrências policiais em Belo Horizonte é feito on-line, em que a vítima procurou a Companhia da Polícia Militar para registrar a ocorrência, que posteriormente foi remetida, também on-line, à Delegacia Especializada de Mulheres. Esta última declinou das atribuições e enviou o expediente à delegacia distrital da circunscrição, onde a autoridade policial, frente a uma ocorrência de vias de fato, intimou a vítima, que compareceu e manifestou seu desinteresse. O delegado, então, encerrou o feito em TCO e procedeu à remessa ao Juizado Especial Criminal. O trâmite desse expediente durou cerca de 5 meses.
De tão longo o trâmite, houve tempo suficiente para que o Poder Judiciário editasse uma resolução, atribuindo a competência para o julgamento das causas relativas à Lei 11.340/06 às Varas Criminais da Justiça Comum e, conseqüentemente, retirando a competência do Juizado Especial Criminal para julgar as infrações de menor potencial ofensivo relativas a mulheres em circunstâncias de violência doméstica.
No citado caso, após cinco meses de trâmite do expediente, o Juizado Especial Criminal declinou de sua competência e enviou o TCO ao Fórum, abrindo o juiz vista ao promotor especializado, que requisitou o retorno dos autos à delegacia de origem, para a instauração do Inquérito Policial, intimação da vítima para oitiva e orientação acerca das medidas protetivas da Lei. O expediente retornou à autoridade policial quase um ano após a vítima ter registrado a ocorrência, não havendo, desde o início, representação. Por sorte, não se tratava de um caso autêntico de violência familiar contra mulher.
Ainda hoje, aproximadamente um ano após a entrada em vigor da nova lei, as dúvidas acerca de sua aplicação persistem. Autoridades policiais há que ainda elaboram Termos Circunstanciados de Ocorrência, quando a vítima manifesta seu desinteresse em representar, e remetem-nos aos Juizados Especiais, seguindo o expediente o mesmo trâmite longo e burocrático. Da mesma forma, promotores insistem na instauração do inquérito policial, quando manifesta a ausência de representação da vítima, nos casos em que a lei condiciona a iniciativa da ação penal à representação. E, por fim, juízes remetem os autos a delegacias desprovidas de competência administrativa para a investigação, por desconhecimento das normas internas da polícia judiciária.
O defeito tem uma única explicação: a divergência na interpretação da norma, não atentando o hermeneuta para a real finalidade da lei, e a falta de entendimento entre as instituições encarregadas na sua aplicação, que não elaboram comissões de representantes encarregados de discutir o assunto e fixar um entendimento interinstitucional.
Uma das divergências criadas com o advento da lei reside no que dispõe o seu artigo 41. De acordo como esse dispositivo, não se aplica a Lei 9.099/95, a lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, aos crimes de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Ocorre que muitos vêm entendendo que a restrição contida no referido artigo abrange também as contravenções. Assim, à contravenção de vias de fato praticada no âmbito familiar contra mulher não poderia ser aplicado o procedimento sumaríssimo.
Ora, uma interpretação meramente literal do art. 41 da Lei nos leva a crer que não quis o legislador excluir as contravenções da aplicação da Lei 9.099/95. Se assim desejasse, deveria ter empregado a expressão infração penal, abrangendo crimes e contravenções, uma vez que o sistema jurídico-penal brasileiro adotou o critério bipartido de distinção. Se o legislador, ao contrário, empregou a expressão CRIME, é porque somente esse tipo de infração deve ser afastado da incidência do procedimento sumaríssimo.
Argumentam alguns acerca da incompatibilidade entre o rito dos Juizados e as determinações da Lei “Maria da Penha”. Não existe a alegada incompatibilidade. Haveria sim, uma incompatibilidade de ordem prática, se as Varas da Justiça Comum ou mesmo os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra Mulher a serem criados, competentes para a aplicação da Lei 11.340/06, não o fossem, também, para a aplicação da 9.099/95. A nosso ver, não existe esse óbice; é perfeitamente possível, como ocorre nas comarcas de vara única, a acumulação dessas competências.
Ademais, avaliando-se os fins visados pelo legislador, chegar-se-ia a conclusão de que, não fosse pelo expressamente previsto no artigo 41 da Lei “Maria da Penha”, toda infração penal de menor potencial ofensivo cometida no âmbito familiar poderia e deveria estar sujeita à aplicação da Lei 9.099/95, excetuando-se o instituto da transação, que só interessa ao Estado. Isso porque a mulher, numa situação de violência doméstica, necessita de processo célere. O que ela quer, em suma, não é somente o afastamento do agressor, mas também que a questão se resolva da forma mais rápida e calma possível. Na maior parte das vezes, há outros interesses envolvidos, como o dos filhos, de forma que um processo longo torna-se prejudicial, inclusive, para as relações afetivas entre as partes.
Acreditamos que essa tese se mostrará mais clara quando forem estabelecidos os previstos juizados especializados em violência doméstica e familiar contra mulher. Nada impede que esses juizados acumulem as competências criminais e cíveis que a lei já lhes atribui, podendo também utilizar-se do procedimento da Lei 9.099/95 para o julgamento das contravenções penais. Dessa forma, assim que uma ocorrência desse tipo fosse registrada, se presentes as partes, bastaria a autoridade policial adotar as cautelas da Lei Maria da Penha e encaminhar ao citado juizado, além do TCO, o pedido cautelar da ofendida.
O desejável, contudo, é que, criados os juizados, fossem também criadas delegacias especializadas de mulheres, adidas a esses mesmos juizados. Nessa esteira, as ocorrências já seriam registradas e as vítimas e agressores já seriam conduzidos, de pronto, a essa delegacia, que daria inicio ao procedimento.
O legislador, quando dispôs sobre a criação dos juizados, já previra os problemas que hoje enfrentamos nas delegacias e nas varas criminais. O prazo de 48 horas para que o delegado encerre o procedimento cautelar e remeta cópia ao juízo, bem como o prazo para que o juiz decida acerca do pedido cautelar, é exíguo. O que ocorre diuturnamente, e o que o leigo não vê, é que a maior parte do expediente é constituído por ocorrências de vias de fato e, na quase totalidade delas, somente a vítima está presente e, em outras, nenhuma das partes comparece. O resultado é que a autoridade policial não dispõe de tempo hábil para proceder a todas as diligências que a lei lhe atribuiu. De regra, a vítima comparece, apresenta a sua versão, solicita as medidas protetivas de urgência e a autoridade remete o expediente às varas criminais, onde o juiz não terá os requisitos mínimos de fumus comissi delicti e de periculum in mora para deferir o pedido cautelar.
A lei, em verdade, criou, para a autoridade policial, o papel de advogado da ofendida. Ele a orienta e, após, elabora o pedido cautelar de medidas protetivas de urgência. Bastava, apenas, ter previsto a criação de juizados para esse fim, conforme exposto, onde as partes seriam conduzidas a uma delegacia adida especializada de mulheres e, já havendo um defensor público de plantão, ele representaria os interesses das partes. Outro equívoco é que, considerando que a grande maioria dos crimes cometidos no ambiente familiar são de menor potencial ofensivo, não havia a necessidade de suprimir a aplicação do rito sumaríssimo. Contudo, tendo a lei assim disciplinado, deve-se reconhecer que, quanto às contravenções, a aplicação da Lei 9.099/95, a exceção do instituto da transação, é perfeitamente possível.
Outro fator que gera divergências é saber se a iniciativa da ação penal nos crimes de lesões corporais leves e nas contravenções de vias de fato é condicionada à representação da ofendida. A Lei parece ter tratado do assunto representação com muita seriedade, haja vista que a mulher em situação de violência familiar sofre toda sorte de pressões por parte do agressor. Por isso, em seu artigo 16, a nova Lei dispõe que, uma vez representando, não poderá a ofendida “renunciar” sem audiência especialmente realizada para esse fim, ouvido o Ministério Público. Obviamente, a expressão “renunciar” foi equivocadamente utilizada. Não se trata de renúncia, mas de desistência ou retratação, uma vez que só se pode renunciar a um direito que ainda não foi exercido.
A representação volta a ter, a partir do advento da Lei 11.340/06, papel relevante no processo penal. A jurisprudência anteriormente entendia que qualquer manifestação da vítima poderia ser interpretada como representação, não sendo necessário o formalismo. Hoje, cremos que a jurisprudência haverá de rever esse entendimento, haja vista que, sem o formalismo, a previsão legal da audiência específica para fins de retratação perde sua razão de ser. Ainda mais porque, na prática, muitas das vezes, quem chama a polícia para agir em caso de violência doméstica é um vizinho que presencia o desentendimento do casal. A ocorrência chega nas mãos do delegado de polícia e ninguém sabe quem acionou o Estado. Ocorre que, quando o expediente chega ao juízo, há uma mera suposição de que a ofendida representou, quando nem mesmo desejava que qualquer providência tivesse sido tomada.
No caso que já tivemos a oportunidade de citar, o expediente tramitou durante aproximadamente um ano e, em todas as oportunidades em que a vítima se manifestou, demonstrou expressamente não ter nenhum interesse no prosseguimento do feito. Ainda assim, o Ministério Público requisitou o retorno dos autos à delegacia para a instauração do inquérito policial e demais exigências da Lei 11.340/06. Ora, se a vítima não representou formalmente e, pior, se manifestou expressamente seu desinteresse, é porque não há urgência e, por conseguinte, não há necessidade de aplicação da Lei “Maria da Penha”.
A representação formal, portanto, tornou-se imprescindível para o correto trâmite do procedimento nos casos de violência doméstica ou familiar contra mulher, haja vista que a incerteza dá ensejo a situações constrangedoras para a própria vítima. Contudo, enquanto nos crimes onde a lei prevê expressamente a necessidade de representação, a interpretação não gera maiores controvérsias, nos casos de lesões corporais leves e vias de fato, os operadores do direito têm encontrado dificuldades hermenêuticas em razão das diversas alterações legislativas.
Quanto às lesões corporais leves praticadas no âmbito de abrangência da Lei “Maria da Penha”, parece inegável que voltaram a ter a iniciativa da ação penal incondicionada, da mesma forma que sempre foram, até o ano de 1995, quando a Lei 9.099, em seu art. 88, condicionou a iniciativa da ação penal à representação da vítima nos crimes de lesões leves e culposas.
Com a Lei 9.099/95, todos os crimes de lesões corporais leves e culposas, de menor potencial ofensivo portanto, passaram a ser de ação penal pública condicionada à representação, e nessa esteira vieram as contravenções penais de vias de fato, pois os Juizados chegaram à conclusão de que, se as lesões corporais estão condicionadas, com muito mais razão deveriam estar também as vias de fato, haja vista que constituem elas infrações de potencial ofensivo ainda menor.
Ocorre que, com a vigência da Lei 11.340/06, além de seu artigo 41 determinar que não mais se aplica a Lei 9.099/95 aos crimes praticados contra mulher no âmbito familiar, ela também alterou o parágrafo nono do artigo 129 do Código Penal, aumentando a pena máxima do crime de lesões corporais cometidas entre familiares para três anos, o que os retira do rol dos crimes de menor potencial ofensivo. Ora, se aos crimes abordados pela Lei “Maria da Penha” não se aplica a Lei 9.099/06, obviamente, não se pode aplicar o artigo 88 deste mesmo diploma às lesões leves praticadas contra mulher nas relações domésticas.
Ainda assim, muitos vêm entendendo que, apesar das razões expostas acima, o artigo 88 da Lei 9.099/95 ainda está em vigor e, por isso, ainda é aplicável às lesões corporais leves, mesmo que praticadas contra mulher nas relações domésticas ou familiares. Alguns chegam a justificar essa posição na Lei Complementar 95/98, asseverando que não é mais possível a revogação tácita no direito pátrio.
Com a devida vênia desses intérpretes, não se trata de revogação. Obviamente, o artigo 88 da Lei 9.099/95 encontra-se vigente e aplica-se às lesões corporais leves, desde que não se tenham produzido no âmbito das relações familiares, porque estas passaram a não ser mais de menor potencial ofensivo. Diga-se de passagem, mesmo que a lesão leve tenha sido produzida entre dois irmãos, a ação será pública incondicionada, porque a lei, ao aumentar a pena máxima do parágrafo nono do art. 129 para três anos, retirou a incidência Lei 9.099.95. Assim, a lesão corporal leve produzida em qualquer outra situação, mesmo que dolosa, terá a sua ação condicionada à representação, mas a lesão corporal leve dolosa produzida nas relações familiares, seja a vítima mulher ou homem, será de ação pública incondicionada.
Esse entendimento encontra respaldo, também, na interpretação teleológica. A ação penal é condicionada à representação, por um fator de política criminal, quando se entende que o interesse do Estado é “menor” que o da parte. Se o interesse é da parte ofendida, restando o Estado interessado apenas subsidiariamente, somente se procede caso a vítima “peça” ao Estado para agir. Se ela não “pedir”, o que se faz via representação, o Estado não tem legitimidade para fazer valer o seu jus puniendi. Na via inversa, se o interesse do Estado sobrepõe-se ao da vítima, a iniciativa será incondicionada.
Quando o Estado elabora uma lei dispondo que, a partir daquele momento, a ação nas lesões leves e nas culposas (de menor potencial ofensivo) estão condicionadas à representação, na verdade, está admitindo que o interesse da parte ofendida é o que importa. Nesse caso, se a parte não deseja acionar o Estado, este não poderá agir por sua própria conta.
A contrário senso, mas usando o mesmo raciocínio, se esse mesmo Estado elabora outra lei, retirando o crime do rol das infrações de menor potencial ofensivo, proibindo a aplicação da Lei 9.099/95 e, não menos importante, dispondo que, nos crimes em que caiba a representação, a parte não poderá desistir sem a apreciação do Judiciário e do Ministério Público uma vez apresentada a representação, é porque, agora, passou a considerar o seu interesse maior que o da ofendida.
Mister ainda se faz ressaltar que, nas situações de violência doméstica, muitas das vezes, a ofendida não tem coragem de procurar ajuda policial ou judicial pelo temor de sobrevirem conseqüências ainda mais graves. Acaso a ação fosse condicionada à representação, o Estado jamais poderia agir, deveria observar a situação da parte ofendida inerte, seguindo o ditado que diz que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, o que causa repugna na sociedade moderna. Portanto, nada mais óbvio é concluir que, hoje, todo crime de lesões corporais no âmbito familiar é de ação penal pública incondicionada.
E quanto às vias de fato? Parece que as vias de fato não podem receber o mesmo tratamento. Aliás, nos dias atuais, deveríamos rever nosso tratamento quando às contravenções em geral. As influências externas, notadamente as tedescas e as ibéricas, nos levam a crer que o Direito Penal não se presta à tutela desse tipo de infração.
A ação penal nas contravenções sempre foi incondicionada, por ausência de previsão quanto à representação. Ocorre que a jurisprudência dos Juizados, conforme ressaltado, vinha entendendo que, se a iniciativa da ação nas lesões leves foi condicionada, então, com muito mais razão haveria de ser também a relativa às vias de fato.
Após as mudanças introduzidas pela Lei “Maria da Penha”, deveriam as vias de fato receber o mesmo tratamento das lesões corporais leves? A resposta também encontra amparo nas mesmas razões já expostas. Exige-se representação por dois motivos básicos: a lei aumentou a pena do crime de lesões corporais, não a das vias de fato, que obviamente continuam na qualidade de infrações de menor potencial ofensivo; o art. 41 da Lei 11.340/06, conforme nosso entendimento, não abrange contravenções, o que impõe reconhecer a aplicação analógica do art. 88 da Lei 9.099/95 às vias de fato.
O que mudou no tratamento dado às vias de fato, então, após o advento da Lei “Maria da Penha”? Muito, todas as medidas que constam na Lei “Maria da Penha” lhes são aplicáveis. Ocorre que o procedimento não merece retoque. É possível a aplicação prática da Lei 9.099/95, independentemente de qual seja o juízo competente para a sua aplicação, e é até mesmo desejável que se aplique, em função da sua celeridade. Não há empecilho legal, haja vista a falta de previsão da contravenção no art. 41 da Lei, mas sim lógico, no que tange à transação. O que não se pode fazer é a autoridade policial remeter um TCO para a Justiça sem observar as exigências da Lei. Carecendo de mudança processual, certo é que a representação também se mantém, ressaltando-se que, havendo representação, não pode a ofendida desistir sem que se realize audiência para esse fim, conforme a Lei determina.
Concluindo, o que muitos ainda não vislumbram é a finalidade que a nova Lei “Maria da Penha” visa alcançar. Todos os casais, todas as famílias têm “altos e baixos”. Desentendimentos, discussões, diferenças pessoais, muitas vezes, ainda irão terminar em insultos e agressões. Isso nem sempre se traduz, contudo, em uma real situação de violência familiar. A lei existe para tutelar os interesses daquelas mulheres que, constantemente violentadas e agredidas por seus companheiros, não encontram uma saída pacífica para o problema.
Nessa esteira, não se pode tratar todas as situações da mesma forma. Ainda existem diferenças entre crimes de menor e maior potencial ofensivo, como também existem reais situações de violência doméstica e casos esporádicos. O procedimento previsto na Lei 9.099/95, excepcionando-se a transação, é perfeitamente passível de ser aplicado aos casos de vias de fato, mesmo que praticadas entre familiares, desde que haja representação da vítima. Por outro lado, as lesões corporais merecem uma tutela repressiva mais ampla e o Estado deve agir ex officio para coibir a violência, por isso a ação, nessas hipóteses, tem a sua iniciativa incondicionada. Acreditamos que, futuramente, juizados especialmente destinados a solucionar os problemas das mulheres em situação de violência doméstica serão, de fato, instituídos e essas questões controvertidas serão devidamente pacificadas. Até lá, cabe a nós, operadores do direito, interpretar a norma e aplicá-la com mais critério, observando a sua finalidade, sob pena de causar às partes mais prejuízo que benefícios.
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