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TEORIA GERAL - PRINCÍPIOS DE DIREITO




Onda Reformista do Direito Positivo e suas
Implicações com o Princípio
da Segurança Jurídica

Fevereiro de 2008



1. Introdução

O Século XX, ao lado de ter proporcionado um ritmo de evolução tecnológica à convivência humana sem precedentes, promoveu também uma indiscutível subversão cultural, destruindo e abalando valores que até então sustentaram, ética e juridicamente, a civilização cristã ocidental.

 

Desnorteado, o pensador e sobretudo o jurista do Século XXI, diante da “herança” legada pelo século anterior, não encontra valores consagrados e definidos para ditar os rumos da ordem jurídica contemporânea, nem critérios válidos e permanentes para imprimir-lhe eficácia e coerência. Daí a figura de uma colcha de retalhos em que se vai transformando o direito positivo, diante da incoerência e do verdadeiro caos em meio ao qual se realizam as reformas legislativas.

 

Ao mesmo tempo que se bate pela dignidade da pessoa humana como fundamento máximo do ordenamento, em qualquer de seus segmentos, adota-se, também, nos mais diversos setores do direito, mesmo nos que constituem o chamado direito privado (onde deveria reinar a autonomia e a vontade soberana do indivíduo, em nome da liberdade, sem a qual não se pode pensar em dignidade de homem algum), a defesa ostensiva da supremacia do público sobre o privado, do interesse social sobre o individual. Ergue-se aos poucos um leviatã que ninguém consegue definir com precisão e cujo desenvolvimento não se tem como antever aonde chegará.

 

Para servir a esse indecifrável senhor, cuja identificação se contenta com rótulos apenas (social, coletivo, público etc.), o indivíduo - razão de ser da sociedade, do Estado e do direito - cada vez mais se anula e mais apreensivo e inseguro se torna. Os valores que sua bimilenar cultura lograra conquistar esfumaçam-se, diluem e se perdem num revolver iconoclasta e impiedoso, a que faltam idéias sólidas e abundam palavras soltas e pensamentos irredutíveis ao anseio do filósofo verdadeiro e decepcionantes para o destinatário comum da ordem jurídica.

 

Com técnicas de direito público, de acendrado teor socializante, sempre mais e mais, se coarcta a liberdade individual, sem embargo de o Estado ocidental atual se declarar fundado na livre iniciativa individual. Onde localizar a dignidade da pessoa humana quando o indivíduo não consegue se libertar da intromissão constante e intensa nas esferas não apenas econômicas, mas até mesmo íntimas, personalíssimas? E cada vez mais se exige que o direito se faça presente com força cogente e inarredável, a tal ponto que, em nome do gigante aterrorizante do social e do coletivo, nem mais se consegue separar o direito público do privado.

 

Dir-se-á: existe a lei como garantia máxima de liberdade e independência do indivíduo frente à sociedade e ao Estado que a representa, porque de seu império nem este escapa. Continua a ressoar magnificamente a máxima fundamental do Estado de Direito: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (C.F, art. 5º, II). No entanto, o que menos se vê no pensamento jurídico dito pós-moderno é a preocupação com a garantia fundamental da legalidade. Advoga-se ostensivamente a supremacia de valores abstratos, por engenhosas e enigmáticas fórmulas puramente verbais, que simplesmente anulam a importância do direito legislado e fazem prevalecer tendenciosas posições ideológicas, sem preceitos claros e precisos que as demonstrem genericamente e, por isso mesmo, permitem ditar por mera conveniência do intérprete e simples prepotência do aplicador o sentido que bem lhes aprouver nas circunstâncias do caso concreto.

 

Direito não é mais sinônimo de lei, e norma ou preceito não mais se distinguem dos princípios. Assim, em nome de pretensos princípios, que muitas vezes não se sabe se existem realmente nem de onde foram extraídos, se cria todo um clima de permissividade para o operador do direito. Totalmente descompromissado com a lei ditada pelo poder legiferante instituído, o aplicador do direito procura a regra a aplicar no caso concreto onde bem lhe convier, ou onde bem entender, pois fora do preceito explícito da lei, sempre haverá algum raciocínio, algum argumento, alguma justificação para explicar qualquer tipo de decisão, até mesmo aquele aberrante com as tradições histórico-culturais de um povo, as quais, aliás, pouco ou nada valem para a mentalidade emergente do século XX, em segmento quantitativamente expressivo.

 

O próprio legislador, em quem os indivíduos pensavam poder confiar para, na votação livre e democrática das leis, estabelecer os limites do autoritarismo do poder governante, abdica simplesmente da competência de traçar, com precisão e segurança, os preceitos que deveriam presidir o comportamento individual no seio da coletividade. Preferem, por comodidade, por menor esforço, ou por submissão a idéias de momento e de puro efeito demagógico, legislar por fórmulas excessivamente genéricas (cláusulas gerais, normas abertas e quejandas). Aproximando-se de meras declarações de valores (indefinidos e indefiníveis), essa conduta inaceitável, e por isso mesmo, injustificável do legislador contemporâneo, deixa o indivíduo (cuja dignidade diz estar tutelando) entregue à sanha e aos azares de quem detém o poder de julgar a conduta individual e social.

 

Não se pretende negar o valor dos princípios éticos que podem e devem atuar na formulação das regras legais e em sua interpretação, por  parte dos juristas e magistrados. Tudo isto, porém, deve ser feito de modo ponderado, deixando estipulado de maneira clara até onde, até que limites, um valor hermenêutico pode ser adotado na compreensão prática do preceito legal.

 

Legislar com excesso de cláusulas gerais e por meio de “chavões” que nada dizem (mas que tudo permitem seja dito em seu nome) representa uma verdadeira traição ao ideário do Estado Democrático de Direito. Se este se caracteriza pela defesa dos indivíduos e seus direitos por meio de uma necessária separação entre funções atribuídas aos diversos órgãos encarregados do exercício dos poderes inerentes à soberania estatal, só se pode divisar governo autoritário e ditatorial quando um mesmo órgão acumula as funções de legislar e aplicar a lei por ele mesmo criada.

 

Seja o Executivo, seja o Judiciário, acumulando numa só mão o poder de legislar e aplicar a norma legal, o Estado foge do programa estatuído pela Democracia, que só se implanta com efetividade quando os poderes soberanos do Estado são despenhados por órgãos independentes e harmônicos entre si, cada qual respeitando a função do outro e exigindo que na sua função não ocorra ingerência dos demais.

 

Se, com leis formuladas axiologicamente e traduzidas excessivamente em cláusulas gerais e normas vagas, caberá ao juiz de fato definir o sentido e alcance da lei, na verdade só se firmará o teor da norma legal depois que o julgador atribuir-lhe o resultado que entender de conferir-lhe. A lei, na realidade, só existirá como preceito depois que o juiz completar a normatização apenas iniciada pelo legislador. O jurisdicionado somente virá a conhecer a regra de cuja violação é acusado depois de julgado pela sentença. Isto representa, em termos crus, uma verdadeira eficácia retroativa para a norma. Se ela só se fez completa e inteligível após o julgamento do fato, a conseqüência é que a norma tal como foi aplicada não existia ao tempo da ocorrência do mesmo fato. Ou, pelo menos, o seu destinatário somente a pôde conhecer, em toda extensão, depois da sentença.

 

Para que essa injustiça não seja cometida é indispensável que a norma não seja excessivamente em branco, nem seja imprevisível quanto ao modo e aos limites de preenchimento de sua previsão genérica. Pode-se legislar deixando margem de flexibilidade para adaptar-se às particularidades do caso concreto. Mas, em nome da legalidade e da segurança jurídica com que a legalidade se acha visceralmente comprometida é imperioso que o legislador, ao empregar a flexibilidade da cláusula geral indique de forma clara e precisa os padrões e os limites da atividade complementar do juiz. Vale dizer, a cláusula geral só é legítima e democrática quando o legislador indica os parâmetros em que, na aplicação, terá de apoiar-se e quais limites dentro dos quais a norma admitirá flexibilização. Em outros termos, a lei terá de proporcionar às pessoas destinatárias de seu preceito o conhecimento e a compreensão do seu teor e dos seus limites.

 

Essas ponderações, nós as fazemos porque o clima legislativo oriundo do final do Século XX acha-se dominado por um furor normativo. Implantou-se a mentalidade de que reformando as leis o Estado melhoraria no exercício do governo da sociedade e esta aprimoraria seus critérios e valores de comportamento intersubjetivo.

 

Esquece-se de que ética é produto cultural e não jurídico. É um dado, portanto, apriorístico, que se estabelece ao longo da história na consciência social até alcançar o nível de exigir das pessoas e do próprio Estado a necessária submissão. Não se impõe um valor ético criado em laboratório por juristas inteligentes. Para a lei absorver um valor ético é preciso que já tenha sido ele chancelado pelos usos e costumes sociais. Mas, como procurar um valor cultural consagrado numa sociedade despida de valores e insubmissa a padrões limitativos das liberdades individuais, e que, a grosso modo, repele qualquer tipo de censura no modo de conceber o mundo, o homem, seu papel e seu destino?

 

É essa tempestade de ventos e torrentes em entrechoque nas reformas constantes e profundas por que passa o direito positivo de nossos dias que nos convida a meditar e ponderar sobre um princípio, um valor, um fundamento, do qual não se pode prescindir quando se intenta compreender a função primária da normatização jurídica. Trata-se da segurança jurídica, que nosso legislador constituinte originário, colocou como uma das metas a ser atingida pelo Estado Democrático de Direito, ao lado de outros valores igualmente relevantes, como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça, todos eles guindados à categoria de “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” (Preâmbulo da Constituição de 1988).

 

O receio (e a quase certeza) de que o propalado furor reformista não se revela preocupado com o problema da segurança jurídica, nem se arrefece diante das desastrosas conseqüências das inovações normativas sobre a estabilidade da ordem jurídica e dos relacionamentos travados entre os jurisdicionados, e entre estes e o Estado, foi que nos motivou a fazer algumas divagações em torno do tema, cuja sede natural é o direito constitucional. Como no Estado constitucional democrático nenhum segmento do direito, seja público ou privado, pode ser bem compreendido longe das luzes e dos princípios constitucionais, penso que os processualistas e civilistas de nosso tempo necessitam arrefecer seu  ânimo renovador para refletir um pouco mais sobre os destinos de nosso ordenamento jurídico. Somente guiada pelos faróis principiológicos adotados pela Constituição, a marcha reformista terá condições de prosseguir de  maneira segura e serena. Urge evitar a reforma pela reforma, as mudanças inócuas que afetam apenas formas verbais sem alterar o fundo ou a substância das normas e, acima de tudo, não se pode, de maneira alguma, desestabilizar o sistema vigente e comprometer, sem razão aceitável e explícita, os valores fundamentais que o informam, com raízes sólidas no plano da Constituição.

 

É nesse plano que devemos voltar os olhos para a segurança jurídica antes de advogar qualquer reforma legislativa e antes de agredir, às vezes, desnecessariamente, outras vezes, de maneira desastrosa, o direito positivo e o sistema que o preside.

 

 

 

2. Segurança jurídica: Vínculo com o moderno Estado comprometido com a garantia dos direitos fundamentais

A Constituição brasileira consagra o princípio da segurança jurídica em mais de uma oportunidade. Já no preâmbulo se anuncia que o Estado democrático de direito, de que se constitui a República Federativa do Brasil, está destinado a garantir, entre outros direitos fundamentais, a segurança. Esta, ao lado de outros direitos da mesma estirpe, se insere no rol dos “valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”. Também no caput do art. 5º, a declaração dos direitos e garantias fundamentais tem início com a proclamação de que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a todos os residentes no país a inviolabilidade do direito à segurança e à propriedade. Esse compromisso do Estado de direito com o princípio de segurança, aliás, não é uma peculiaridade da República brasileira. Todo o constitucionalismo ocidental de raízes européias o adota e exalta.

 

Em Portugal, v.g., embora a Constituição não consagre de maneira direta e textual o princípio da segurança jurídica, no enunciado dos fundamentos do Estado de direito democrático (art. 2º), doutrina e jurisprudência estão acordes em que dito princípio “decorre necessariamente da idéia de Estado de direito e, assim, o têm por consagrado pela Constituição”.

 

Não é diferente o posicionamento do direito grego, segundo o qual “o princípio da segurança jurídica é um elemento substancial do Estado de direito, que é o fundamento jurídico da dignidade humana, que o Estado democrático deve respeitar e proteger”.

 

Tal como se passa em Portugal, também na Constituição dos Estados Unidos não há uma expressa menção ao princípio da segurança jurídica. A jurisprudência, no entanto, chega à segurança jurídica indiretamente, por meio da aplicação da exigência de não-retroatividade e do respeito à cláusula do due process. Pode-se, então, alcançar à concepção, por via jurisprudencial, de que o princípio de segurança jurídica também é visto como “um componente essencial” do Estado de direito e que “o sistema constitucional americano não ficaria realmente fora de suas exigências”.

 

Na Itália, em que o princípio da legalidade sofreu pesados comprometimentos durante o regime fascista, quando o autoritarismo e arbitrariedade fizeram escola, a doutrina contemporânea valoriza o princípio da segurança jurídica, fazendo-o corresponder à idéia de “certeza de direito. Na concepção jurisprudencial muito se tem discutido a propósito do tema e, mesmo no silêncio da Constituição, a Corte Constitucional italiana já proclamou que a “segurança jurídica é de fundamental importância para o funcionamento do Estado democrático”, e que deve ser definida como “um princípio supremo”, ao afirmar que “a confiança do cidadão na segurança jurídica constitui um elemento fundamental e indispensável do Estado de Direito”.

 

Goze ou não do elevado grau de princípio supremo, na ordem constitucional italiana, o certo é que o princípio de segurança jurídica na doutrina e jurisprudência daquele país ocupa uma posição superior à de simples princípio geral de direito. A segurança jurídica insere-se numa ordem superior, para desfrutar do status de “um princípio constitucional não-escrito, que pode interligar-se com diversas exigências e com diversos outros princípios”10 , e que , na realidade, desempenha um papel de “importância fundamental para o funcionamento do Estado de direito democrático”11 .

 

Na Alemanha, onde em passado de lastimável memória se ofenderam profundamente as idéias de liberdade e dignidade humana, seu atual direito constitucional, voltado para o resgate da democracia e dos direitos da personalidade, atribui à segurança jurídica o status de um princípio, mais precisamente de um imperativo (Gebot der Rechtssicherheit) portador de um valor constitucional. Não se trata de um valor próprio, mas algo derivado do princípio geral do Estado de direito, no sentido da Lei Fundamental. Ou seja: “o princípio de segurança jurídica é um elemento essencial, com a justiça (Gerechtigheit), do princípio do Estado de direito e tem, por conseguinte, como todos os elementos estruturadores da noção do Estado de direito, um valor constitucional. Isto decorre de uma concepção teórica mais global da liberdade individual e da sociedade liberal que é aquela onde se nutre a democracia. No seio desta sociedade onde a liberdade individual se determina a ser um valor de referência e onde o Estado de direito se empenha a ser a garantia, a segurança jurídica aparece como um componente essencial de tal proteção”12 .

 

A tal princípio - é bom dizer - não faz menção expressa a Constituição alemã. Sua feição constitucional irrecusável, no entanto, deriva da própria concepção da noção do Estado de direito concebido como forma institucional da Alemanha nos termos do art. 20 de sua Lei Fundamental. O princípio de segurança jurídica é considerado, no mesmo nível que a justiça, como elemento essencial, da noção de Estado de direito13 .

 

O princípio de segurança jurídica, principalmente em razão da valorização dos direitos do homem no seio do direito comunitário, encontra grande sucesso no direito francês. Tem-se a consciência de que a segurança jurídica acompanha os desdobramentos da noção de Estado de direito e atende às exigências de segurança impostas em face do desenvolvimento de um ambiente cada vez mais complexo e sujeito a evoluções cada vez mais incertas. Assim como o meio ambiente reclama atenção científica eficiente, o meio social também exige do legislador, para evitar penalizações excessivas, “regras jurídicas que sejam simples, claras, acessíveis e previsíveis”14 .

 

A presença do princípio da segurança jurídica no direito constitucional francês é interpretada como fruto da evolução do Estado de direito de um sistema formal para um sistema que contém exigências materiais. Liga-se ao novo Estado em que se enfraquece o princípio da democracia majoritária e se reforça o sistema dos direitos fundamentais. Essa evolução busca superar a visão de um sistema fundado unicamente sobre o respeito à hierarquia das normas jurídicas para se interessar pelo conteúdo dessas normas. Diz-se então que o Estado de direito se organiza por meio de um sistema político e jurídico voltado para a proteção dos direitos fundamentais. É nesse Estado de direito preparado para tutelar os direitos fundamentais que aos princípios clássicos da separação dos poderes, da legalidade e da proporcionalidade, se agrega o princípio da segurança jurídica, dentro das exigências materiais do atual Estado de direito15 .

 

Nos julgamentos do Conselho Constitucional da França, a propósito principalmente do princípio que exige a clareza e a precisão da lei, é que se revelam a importância e a natureza do princípio de segurança jurídica. E nele se vê “uma exigência constitucional”. Essa mesma ótica prevalece quando se trata da jurisprudência relativa à retroatividade das leis fiscais, classificando a irretroatividade, na espécie, como uma das imposições da segurança jurídica, a que se atribui a natureza de “uma das exigências constitucionais”16 .

 

Esse posicionamento do direito constitucional francês afina-se com todo o nível do direito comunitário europeu. Com efeito, “o princípio de segurança jurídica foi erigido pela Corte de justiça das comunidades européias ao grau de exigência fundamental17 .

3. Noção de segurança jurídica

O Estado democrático de direito conta com os princípios de “segurança jurídica” e de “proteção da confiança” como elementos constitutivos da própria noção de “Estado de direito”18 . A partir dessa constatação, Canotilho ensaia a conceituação do que ele denomina “princípio geral de segurança jurídica”, em seu sentido mais amplo, e que compreende também a idéia de “proteção da confiança”. Para o grande constitucionalista português, esse princípio geral pode ser assim enunciado:

 

“Os indivíduos têm o direito de poder contar com o fato de que aos seus atos ou às decisões públicas concernentes a seus direitos, posições ou relações jurídicas fundadas sobre normas jurídicas válidas e em vigor, se vinculem os efeitos previstos e assinados por estas mesmas normas” .19 

 

 Completa, Canotilho sua conceituação, sublinhando que o princípio de segurança jurídica exige “a confiabilidade, a clareza, a razoabilidade e a transparência dos atos do poder”, para, em seguida, revelar as mais importantes manifestações desse princípio:

 

“(1) Relativamente a actos normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais - inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração - tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos constitutivos de direitos” .20

 

A jurisprudência da Corte Constitucional portuguesa, porém, não limita a incidência do princípio da segurança jurídica, em matéria de atos normativos, apenas à defesa contra os efeitos retroativos. Exige também que as leis sejam formuladas segundo a exigência de precisão e clareza de seus preceitos, chegando a conceber um princípio que denomina de “princípio de determinabilidade das leis21 .

 

Há dois sentidos, segundo certos autores, a serem distinguidos no conceito de segurança jurídica: a) a segurança que deriva da previsibilidade das decisões que serão adotadas pelos órgãos que terão de aplicar as disposições normativas; e b) a segurança que se traduz na estabilidade das relações jurídicas definitivas22 .

 

Entre os doutrinadores brasileiros, o princípio da segurança jurídica tem provocado, no campo do direito tributário, estudos excelentes. É que, numa área delicada como a do direito tributário, maior é a exigência de cuidados com a observância da segurança jurídica porque a taxação da atividade individual interfere significativamente na viabilidade, no planejamento e na gestão das empresas e dos patrimônios das pessoas físicas ou jurídicas. Vários princípios constitucionais atuam na espécie a fim de assegurar aos contribuintes a “tranqüilidade, confiança e certeza quanto à tributação”, como o “princípio da legalidade”, “da anterioridade da lei ao exercício de sua aplicação” e da “irretroatividade da lei tributária, salvo para beneficiar o contribuinte”23 .

 

Tudo isto conjugado delineia o modo global de atuar o princípio da segurança jurídica que haverá de ser respeitado pelo legislador, pelo fisco e pela justiça, de modo a propiciar sempre aos contribuintes condições de conhecer, com adequada antecedência e “com certeza e segurança a que tipo de gravame estarão sujeitos no futuro imediato, podendo, dessa forma, organizar e planejar seus negócios e atividades24 ”.

 

A fiel observância do princípio da segurança e da confiança, no caso da legislação tributária, faz cessar, por parte do Estado “a improvisação, a irresponsabilidade e o imediatismo com que muita vez os governos autoritários praticam a tributação, ao arrepio dos mais comezinhos princípios jurídicos, desorganizando a economia e desorientando a comunidade”. Ao contrário, e como é de se desejar, o respeito aos aludidos princípios, por parte dos governantes acarreta efeitos de suma importância em matéria de tributação: (a) assegura aos governados tranqüilidade, confiança e certeza quanto à tributação; (b) assegura ao governo o respeito dos governados; e (c) compartilha o governo com o parlamento a responsabilidade pelos rumos da política tributária, como sói acontecer nas verdadeiras democracias”25 .

 

O primeiro cuidado a ser tomado pelo legislador, para garantir segurança jurídica aos indivíduos, é o da publicidade adequada, em que se inclui o período de vacatio legis compatível com a necessidade de conhecer a lei nova a tempo de adaptar-se aos seus preceitos inovadores. Mas, acima da publicidade, há também, na consciência jurídica italiana, a convicção de que é fundamental o problema ligado à exigência de que os atos normativos sejam redigidos de modo a serem “compreensíveis pelos destinatários”26 . Com efeito, a “maneira mais eficaz de reduzir consideravelmente a ‘insegurança’ jurídica é, mesmo, a de redigir os textos normativos à base de regras claras e estandardizadas” (segundo padrões técnicos)27 . Além disso, impõe-se outro tipo de cuidado técnico para fugir da insegurança jurídica: tem-se de evitar o caos dentro do sistema geral do ordenamento jurídico. A lei nova não pode desorganizar o sistema, criando contradições ou dificuldades insuperáveis de compatibilização e interpretação, levando o aplicador e o destinatário a perplexidades e conflitos graves e de difícil solução. “A exigência de uma redação mais clara dos textos normativos vem, pois, juntar-se à exigência de coordenar os textos a fim de dar à administração, e também aos cidadãos, os meios de melhor conhecer o direito positivo”28 .

 

Em nome do princípio da segurança jurídica, condena-se também a “doença do excesso de direito”, ao argumento de que a “hipertrofia” das leis acaba por produzir um cipoal de regras cuja aplicação, na prática, ao invés de organizar o comportamento social, torna-o exageradamente complexo. A inflação normativa, que dificulta a todo instante a constatação de quais são as normas realmente em vigor, não contribui, evidentemente para os indivíduos terem uma noção clara e precisa de seus direitos e deveres29 .

 

 

4. Leis vagas, imprecisas e cláusulas gerais

Por simples modismo e, às vezes por comodismo, o legislador contemporâneo é levado à edição de normas incompletas e vagas, que importam em verdadeira delegação de poder normativo aos órgãos da administração e do Judiciário. Não que se deve impedir a adoção de cláusulas gerais nos textos legislativos. Valores éticos, para serem incorporados ao direito positivo reclamam a observância dessa técnica. O abuso, contudo, do emprego constante e injustificado de cláusulas gerais pelo legislador pode desestabilizar o ordenamento jurídico, gerando dúvidas, incertezas e mesmo imprevisibilidade no meio social.

 

Há na deturpação dessa técnica uma tendência do parlamento de despojar-se, em boa parte, de sua competência legislativa, relegando ao Judiciário completar a tarefa normativa, sem que os indivíduos possam prever, com segurança jurídica, como o órgão aplicador da regra vaga irá colmatá-la. É necessário, logicamente, coibir esse tipo de abuso legislativo, para evitar que, de fato, o juiz se torne legislador; e o que é pior, legislador, ex post facto, pois a lei só será ditada em seu conteúdo completo e definitivo depois de consumado o fato sobre que irá incidir. A segurança jurídica, por sua vez, não pode conviver com problemas desse porte. É fundamental, para ter-se uma ordem jurídica como consagradora do princípio de segurança jurídica que, primeiro se observe a separação de poderes entre legislador e juiz, e depois que a norma criada pelo primeiro somente seja aplicada pelo segundo aos fatos supervenientes à sua edição. É o que proclama a Suprema Corte Norte-Americana, quando insiste na necessidade de interditar “as ex post facto laws, para, assim, permitir [sempre] aos indivíduos terem um conhecimento prévio e estável das leis às quais devem se submeter e das penas às quais se expõem”30.

Se bem que o legislador possa às vezes lançar mão de “conceitos indeterminados” ou de “cláusulas gerais”, o certo é que, para restringir, suprimir ou modificar direitos, liberdades ou garantias, e sempre que autorizar ação discricionária da Administração, “deverá, necessariamente, fazê-lo por meio de lei que compreenda um minimum de critérios objetivos, que possam servir de limites da liberdade de escolha da Administração [e da Justiça], de tal modo que os cidadãos possam contar com um quadro legal claro e seguro quanto à previsibilidade das opções da Administração e, ao mesmo tempo, que os tribunais possam ter elementos objetivos suficientes para emitir um julgamento sobre a legalidade das decisões administrativas”31 .

 

O Estado de direito democrático, ao inserir em seus fundamentos o princípio de segurança jurídica, impõe sejam os atos normativos editados com precisão ou determinabilidade. Equivale dizer, segundo Canotilho, que há, de um lado, a exigência de “clareza das normas legais”, e, de outro, reclama-se “densidade suficiente na regulamentação legal”32 , que nem sempre se revela compatível com o emprego de cláusulas gerais, se não se resguarda um mínimo de concretude. Para o constitucionalista, o ato legislativo “que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada) não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos”33 .

 

Em abordagem direta das normas vagas e cláusulas gerais, adverte Canotilho:

 

“Como é de intuir, a natureza da lei - aberta ou indeterminada, precisa ou concreta - tem muito a ver com as relações de legiferação de aplicação da lei. A indeterminabilidade e abertura da lei poderá ser justificada pelo facto de o legislador se querer limitar a leis de direcção e deixar à administração amplos poderes de decisão. Isto já foi observado: a indeterminabilidade normativa significa, muitas vezes, delegação da competência de decisão. A determinabilidade ou indeterminabilidade é, pois, um problema de distribuição de tarefas entre o legislador e o aplicador ou executor das leis. O controlo destas “normas abertas” deve ser reforçado. Elas podem, por um lado, dar cobertura a uma inversão das competências constitucionais e legais; por outro lado, podem tornar claudicante a previsibilidade normativa em relação ao cidadão e ao juiz. De facto, as cláusulas gerais podem encobrir uma “menor valia” democrática, cabendo, pelo menos, ao legislador, uma reserva global dos aspectos essenciais da matéria a regular. A exigência da determinabilidade das leis ganha particular acuidade no domínio das leis restritivas ou de leis autorizadoras de restrição”.34 

 

 

 

5. Exigências de qualidade e previsibilidade para a obra do legislativo

O princípio de segurança jurídica, que na verdade, é o resumo de um complexo de outros princípios constitucionais, é desdobrado por Bertrand Mathieu em dois grandes grupos de exigências, que vão desde a forma até a substância das normas editadas pelo legislador democrático.

 

Assim, a exigência de qualidade forma um dos grupos e a exigência de previsibilidade configura o outro grupo. Em nome da exigência de qualidade da lei atuam o “princípio da clareza”, o “princípio da acessibilidade”, o “princípio da eficácia” e o “princípio da efetividade”. No tocante à exigência de previsibilidade da lei, arrolam-se o “princípio da não-retroatividade”, o “princípio da proteção dos direitos adquiridos”, o “princípio da confiança legítima” e o “princípio da estabilidade das relações contratuais”.

 

Diante de tal quadro principiológico, Bertrand Mathieu sintetiza o primeiro grupo de exigências ditadas pela segurança jurídica como revelador, da “qualidade da lei” que se torna “uma exigência constitucional” determinada pela necessidade de o juiz exercer “controle sobre os elementos formais do texto normativo que lhe é submetido”. De outro lado, a segurança jurídica implica uma “certa previsibilidade da legislação”.

 

Isto porque a segurança jurídica não é outra coisa senão a possibilidade reconhecida pelo operador econômico, fiscal, e por todos os juridicionados, de um meio jurídico seguro, posto ao abrigo das áleas e reviravoltas eventualmente ocorridas nas regras do ordenamento jurídico35 . Em outros termos, o legislador deve estabelecer e manter regras segundo as quais o particular, ao praticar atos jurídicos, possa se comportar com previsão de seus efeitos e com confiança naquilo que o ordenamento lhe proporcionou36 .

 

Em relação à qualidade da lei (em seu aspecto formal), cujo ponto de partida é a clareza de seu texto, a jurisprudência constitucional francesa a relaciona com a necessidade de posturas normativas caracterizadas pela sinceridade e lealdade. Para que os particulares possam se organizar e atuar com segurança jurídica é necessário, no Estado de Direito, que as leis sejam redigidas de maneira suficientemente “clara e precisa”37 . Lembra Mathieu que a França já foi condenada pela Corte Européia dos Direitos do Homem, em julgamento de 24 de abril de 1990, por ter editado leis imprecisas sobre escutas telefônicas, que, por isso, não respeitavam a segurança jurídica, no pertinente à acessibilidade e previsibilidade do direito38 .

 

O Conselho Constitucional da França, por seu turno, também já consagrou em diversos casos o princípio da clareza e precisão da lei como “exigência imposta pelo princípio de segurança jurídica”39.

 

Em Portugal, o Tribunal Constitucional considerou, em diversas ocasiões, ofensivas às garantias constitucionais do Estado de direito democrático leis que não satisfaziam, em determinadas matérias, o grau de exigência de determinabilidade e precisão do direito; o mesmo ocorrendo com leis que adotavam cláusulas gerais ou conceitos indeterminados, sem respeitar um mínimo de critérios objetivos para delimitar a discricionariedade do aplicador da norma40 . Em doutrina, Canotilho registra, a propósito, que o respeito aos postulados da segurança jurídica, na realidade não é exigível apenas do legislador. Também de todos os demais detentores do poder - Executivo e Judiciário - os ditames da segurança e da proteção da confiança são exigíveis. O mesmo faz Willy Zimmer, em relação ao direito alemão, quando observa que “os atos das autoridades judiciárias e, mais particularmente as decisões de justiça, devem também revestir-se de um caráter seguro e mais genericamente ser submetidas ao respeito do princípio de segurança jurídica”41 . E Nunes de Almeida acrescenta, voltando ao direito lusitano, que são eles exigíveis por parte de qualquer pessoa, física ou moral, privada ou pública42 .

 

Para Willy Zimmer, “a confiança é considerada como conceito de base da democracia. Constitui o fundamento moral da democracia representativa (que começa com o mandato dos eleitores aos eleitos) e se propaga como fundamento de todas as relações travadas pelos cidadãos e os poderes públicos”43 .

 

No domínio do princípio da segurança jurídica, Zimmer insere a exigência de clareza do direito, porque sem ela o destinatário da lei não tem como conhecer razoavelmente o comando normativo, o que compromete a perspectiva de previsibilidade e certeza de seu respeito e pode até chegar ao plano da invalidade jurídica44 .

 

No Brasil, a Constituição preocupou-se com a técnica legislativa e, para afastar o risco de leis ofensivas aos princípios da segurança jurídica e da confiança, determinou a edição de lei complementar para regulamentar “a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis” (CF, art. 59, parágrafo único). A Lei Complementar que cumpriu o preceito constitucional é a de nº. 95, de 26.02.1998. Dentre suas diversas normas, figura a imposição de observância de princípios importantes, para assegurar a certeza, confiança e previsibilidade, como a exigência da limitação de cada lei ao tratamento de um único objeto e a vedação de inclusão de matérias estranhas a seu objeto, assim como a interdição do disciplinamento do mesmo assunto em mais de uma lei (art. 7º); cuidou, ainda, de exigir, como regra a explicitação do prazo de vigência da nova lei, fixado de maneira a contemplar sempre “prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento”, reservada a vigência a partir da publicação apenas “para as leis de pequena repercussão (art. 8º); finalmente, determinou-se a abolição da cláusula “revogadas as disposições em contrário”, devendo a cláusula de revogação “enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas” (art.9º). Quanto ao texto das disposições legais, a Lei Complementar  nº. 95, determina sejam elas “redigidas com clareza, precisão e ordem lógica” (art. 11, caput). Traçaram-se, ainda, minuciosos dispositivos, para recomendar providências redacionais voltadas para a “obtenção de clareza” (inc. I), “de precisão” (inc. II) e “de ordem lógica” (inc. III).

 

O legislador brasileiro, portanto, está ciente das exigências necessárias para dotar o País de leis elaboradas com observância de requisitos técnicos e jurídicos capazes de compatibilizar o direito positivo nacional com o princípio constitucional democrático de segurança jurídica45 .

 

A exigência de submissão do legislador à clareza e precisão da lei pressupõe, entre outras cautelas, que a norma “não utilize cláusulas gerais vagas ou noções jurídicas imprecisas”, ainda na lição de Zimmer. Isto, como já se anotou, não impede que cláusulas gerais sejam utilizadas para introduzir na lei valores éticos. O que não se admite é o recurso a cláusulas excessivamente vagas que não dêem ensejo a interpretações seguras. É preciso que mesmo na generalidade, a cláusula seja “explícita, sem ambigüidades, coerentes e que seu conteúdo verdadeiro possa ser conhecido por um trabalho de interpretação razoável”46 .

 

6. Relatividade do princípio de segurança jurídica

Nenhum princípio no campo do direito, nem mesmo nos domínios constitucionais, pode ser visto e aplicado como absoluto. A segurança jurídica, ainda que mereça a qualificação de elemento natural e necessário do Estado de direito democrático, não escapa à relatividade inerente á sistemática dos princípios de direito. É que os princípios, na sua essência não traduzem preceitos mas, sim, valores, os quais, por natureza, são elásticos, sem contornos e limites precisos, e exercem muito mais sua função no terreno da hermenêutica do que no campo das normas, estas, sim, encarregadas de traçar regras claras e precisas sobre o comportamento dos sujeitos de direito.

 

Dada a plasticidade dos princípios, dentro de qualquer ramo do direito, inevitáveis são os confrontos, as colisões e as superposições entre eles. Daí a formulação de novos princípios ou critérios especialmente concebidos para administrar e solucionar a convivência entre os diversos valores axiológicos, nas crises oriundas de concorrência entre eles. É a partir das idéias de proporcionalidade e razoabilidade que se logra a harmonização entre os princípios quando se colocam em linha de colisão. Não se trata simplesmente de desprezar um princípio e dar total supremacia ao outro. O que o intérprete deve procurar é o equilíbrio entre eles, demarcando, diante das circunstâncias do caso, até que ponto deve ir a força de cada um dos princípios cotejados. Na maioria das situações será possível aplicar, por parte ou etapas, ambos os princípios concorrentes, tornando mais aparente que real o conflito. Em outras, a natureza dos interesses a tutelar está, na realidade, sob o domínio específico de apenas um dos princípios, de maneira que o outro, que se pretendeu também aplicar, deveria ser afastado de cogitação.

 

O legislador quando insere novas regras, alterando o ordenamento jurídico, nesse quadro de respeito aos princípios deverá estar jungido às implicações da segurança jurídica, mas terá de atentar para os anseios das necessidades sociais, que reclamam revisão e aperfeiçoamento de certas instituições de direito. Os interesses individuais até então tutelados são relevantes, mas não podem permanecer estáticos e intocáveis. Valores constitucionais superiores podem estar em jogo, justificando, pela sua transcendência, alterações normativas aparentemente enfraquecedoras da garantia de segurança jurídica.

 

Há, sem dúvida, fatores e situações que, conjunturalmente, comprometem a força protegida pela segurança jurídica e recomendam a prevalência de outro princípio, também, de estatura constitucional. É certo, pois, que o princípio de segurança jurídica não se apresenta como um princípio de valor absoluto. Ao contrário, “uma de suas características é ser modulável em função de outros imperativos, de outros componentes da noção de Estado de direito”, cabendo ao legislador (sobre controle da Corte Constitucional) “operar essa conciliação entre os diferentes imperativos e a segurança jurídica”47 .

 

Por exemplo, na ordem normativa o valor máximo é o da regra constitucional, que, uma vez violada acarreta imediatamente a invalidade da norma infraconstitucional ofensiva à supremacia da Lei Maior48 . No entanto, a lei prevê situações em que a segurança jurídica, em setores sensíveis a relevantes valores de ordem pública ou excepcional interesse social, recomenda tenha a decretação de inconstitucionalidade efeito apenas para o futuro (ex nunc), preservando, assim, os efeitos da regra inválida anteriormente produzidos49 . Assim, a segurança jurídica, de alguma forma, pode suplantar até mesmo o princípio da constitucionalidade.

 

São clássicos e corriqueiros, por outro lado, exemplos em que a garantia constitucional de segurança jurídica traduzida na coisa julgada pode ser superada pelo princípio de justiça. É o que se passa nos diversos casos em que a sentença transitada em julgado se submete à ação rescisória. Segurança jurídica e justiça (eqüidade) são, aliás, os dois elementos principais da idéia de direito, segundo ressalta Radbruch. Ambos são essenciais aos fundamentos do Estado de Direito. A ordem jurídica constantemente procura harmonizá-los. Exigências de casos concretos, no entanto, podem contrapor ditos princípios a fundamentos de maneira a gerar um antagonismo. “Um conflito entre as duas exigências é às vezes inevitável” e, então, “a prioridade dada à segurança pode eventualmente contrariar uma solução de justiça. A justiça é impossível sem a segurança jurídica, mas, este imperativo pode ser também uma ameaça para a justiça material”50 .

 

O legislador é aquele a quem compete orientar os sujeitos de direito para descobrir qual o princípio a prevalecer nas situações conflituosas, se o de segurança se o de justiça. Se não o fizer arbitrariamente, sua solução normativa, necessária evidentemente, não será criticado ou censurado do ponto de vista constitucional.

 

Deverá, contudo, existir na ordem dos interesses constitucionalmente protegidos, um valor que justifique a quebra da segurança jurídica. Sem que se depare com esse tipo de razão, enraizada nos valores constitucionais, a lei nova desestabilizadora das situações protegidas pelo princípio de segurança jurídica, assume o caráter, para seus destinatários, de onerosidade excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificável e arbitrariamente terá ofendido situações constitucionalmente tuteladas e que apenas sob regência de um critério de proporcionalidade deveriam se submeter ao outro princípio que não o da segurança jurídica51 .

 

Não é - repita-se - por arbitrária opção legislativa que se pode invadir e quebrar a segurança jurídica. A proteção da segurança jurídica só se esvai quando se depara com a necessidade de proteção de outros princípios classificados como supremos na estrutura do Estado de direito democrático. “Posto que fundamental para a existência efetiva de um Estado de direito, a segurança não tem proporções para prevalecer sobre os elementos que lhe caracterizam a estrutura e a essência”52 . É que dentro da ordem de valores constitucionais existem, naturalmente, aqueles que, em certas situações, hão de preferir à segurança jurídica.

 

De qualquer maneira, não se pode legislar de maneira arbitrária e irresponsável, fazendo tabula rasa da garantia constitucional de segurança, já que, na ausência de justificativa extraída da própria ordem constitucional, não se admite a atividade legislativa ofensiva ao importante princípio sub examine.

 

 

 

7. Ética, justiça e segurança na ordem jurídica

O homem não sobrevive sem a sociedade e esta não cumpre sua função sem o Direito. É que a vida em sociedade se trava por meio de relações entre sujeitos livres, inteligentes e que são iguais em substância e dignidade. Nesse ambiente são inevitáveis os conflitos de interesse já que os bens necessários (materiais ou imateriais) à vida de cada um são freqüentemente os mesmos. É para evitar ou remediar tais conflitos que o Direito traça as regras de acesso aos bens da vida, dentro da comunhão social. A missão que lhe toca é fundamentalmente a de evitar os atritos e implantar a harmonia entre os membros da comunidade civilizada. Numa palavra, seu objetivo é a paz.

 

Para organização de seu programa pacificador, o Direito maneja com dois valores primaciais: a Justiça e a Segurança. O primeiro deles corresponde a anseio de ordem ética, cujo conteúdo é variável e indefinível, tendendo, quando levado a sua pureza extrema, a um caráter absoluto inatingível pelas limitações do conhecimento possível do homem, dentro do plano da racionalidade. O segundo é a meta prática, concreta, que o Direito pode e deve realizar, e que a inteligência humana pode perfeitamente captar, compreender e explicar. É com o seu concurso que a paz procurada pela sociedade consegue ser estabelecida.

 

Sem a paz não se pode pensar na justiça, mesmo porque sendo absoluta e inacessível em sua totalidade, e ensejando aos indivíduos e grupos captação e entendimento por ângulos e modos distintos, a justiça, quando levada ao absoluto, tem o dom de fomentar disputas e atritos sem fim. Em suma: enquanto a segurança conduz à paz, a justiça induz à guerra53 . Como o valor absoluto da Justiça está fora do alcance da obra normativa do homem, o Direito se contenta em implantar a ordem, a segurança, dentro de um norte inspirado em certos padrões extraídos de alguns valores éticos que o anseio de justiça da sociedade consegue ressaltar. O mundo do Direito, portanto, não é o da Justiça (em seu feitio absoluto). É o da segurança. Sem justiça alguma o Direito - é verdade - encontrará dificuldades para manter seu projeto de pacificação social. Sem segurança, porém, o Direito simplesmente não existe.

 

Daí porque o legislador, quando descamba para o plano em que os valores éticos ocupam o lugar dos preceitos certos, claros, impositivos que devem ser as normas jurídicas autênticas, realiza na verdade a destruição da ordem jurídica. Em lugar da paz e harmonia que a segurança jurídica pode proporcionar, estabelece as dúvidas e divergências próprias da natureza incerta e imprecisa da justiça; em vez de ordem passa a viger o caos; e o Estado que abre mão da segurança em sua organização não pode, por conseguinte, ser qualificado como um Estado de Direito. Será, isto sim, um Estado caótico, desorganizado, um Estado de não-direito, um Estado que perde a confiança de seus cidadãos.

 

É natural que o homem, sendo dotado não só de razão, mas também de sentimento, cultive valores éticos, apurados ao longo da vida social civilizada, e queira que o ordenamento jurídico não seja hostil a tais valores. O que não pode é recorrer a valores imprecisos e inalcançáveis em sua essência absoluta pela razão, para destruir aquilo de concreto e efetivo que o direito pode e deve construir: a segurança jurídica. A justiça pode e deve estar, de alguma forma, presente na ordem jurídica. O que não se admite é que sirva de instrumento para negá-la, recusando-lhe a força pacificadora de que não pode prescindir para cumprir sua função no Estado de direito democrático.

 

Calha bem ao momento atual do direito brasileiro a sábia advertência de Ortega y Gasset sobre o abuso da superposição do ético ao jurídico:

 

“De tanto falar de justiça se aniquilou o jus, o Direito, porque não se respeitou sua essência, que é a inexorabilidade [impositividade] e a invariabilidade [certeza]. O reformismo do Direito, ao fazê-lo instável, mudadiço, o estrangulou”.54

 

Urge, pois, evitar a consumação da morte do Direito, restaurando e conservando sua essência: a segurança jurídica.

 

    

8. Crítica à onda reformista por que passa o país

É induvidável que o ordenamento jurídico não pode ser estático e que deve evoluir acompanhando o desenvolvimento social, cultural e econômico da nação. Os instrumentos jurídicos devem se compatibilizar com as necessidades organizacionais da sociedade que aspira a melhorar e progredir em todos os segmentos da vida comunitária.

 

Múltiplos são os valores que se põem em jogo nessa marcha evolutiva da sociedade contemporânea e todos eles dependem de uma boa base de sustentação jurídica, pois é ao direito que toca a tarefa de estruturar e viabilizar a convivência social.

 

Por mais que se proclame que certos valores são supremos e invioláveis, sua efetiva implantação na vida em sociedade somente se tornará realidade se as estruturas jurídicas contarem com um sistema normativo confiável e sobretudo seguro. É inadmissível uma sociedade que se diz fundada na liberdade e na legalidade, e que pretenda tutelar a dignidade da pessoa humana, relegar a plano secundário a segurança das relações jurídicas travadas em seu seio.

 

Quem diz direito, acima de tudo diz paz, paz no relacionamento daqueles que compõem o tecido social do Estado de direito. Não é para outro fim que o direito organiza o Estado Democrático. Como, portanto, imaginar a vida em paz e harmonia se não se preocupar com a segurança nas relações implantadas sob a égide do direito?

 

Todos os povos culturalmente evoluídos de nossa civilização vêem na segurança jurídica um elemento essencial (e, por isso, indispensável) do Estado de direito democrático, cuja presença na configuração dessa modalidade de Estado nem mesmo depende de literal previsão na constituição de cada país. Trata-se de elemento que deflui naturalmente da idéia de Estado de direito, nos padrões concebidos pela democracia.

 

Falha, portanto, o legislador quando, empolgado por alguns valores relevantes e positivos, neles se concentra, e realiza obra renovadora de importantes capítulos do ordenamento jurídico, ignorando, porém, a necessidade de preservar, nas estruturas normativas renovadas, a segurança jurídica.

 

Todo o ordenamento jurídico brasileiro, nas últimas décadas, tem sido perpassado por uma onda intensa de revisão e atualização, tanto no terreno do direito público como do direito privado. Em nome do princípio da socialidade e da justiça, porém, nem sempre se tem destinado ao princípio de segurança jurídica a atenção que ele reclama. De forma alguma temos a intenção de refrear o movimento reformista, de interesse, utilidade e necessidades evidentes. Nosso propósito, nas presentes notas, cinge-se a fazer um alerta para a imperiosidade de imprimir ao movimento reformador uma direção que não se distancie dos padrões reclamados pela segurança jurídica. Todos os valores positivos que a Constituição ressalta devem se traduzir em regras legisladas que os tornem reais e presentes na vida quotidiana normatizada pelo direito. Isto, porém, só será útil e correto, do ponto de vista constitucional, se a implantação legislativa se der dentro dos padrões da proporcionalidade a ser mantida na conjugação de todos os princípios e valores fundamentais. Toda exaltação excessiva e desproporcional de um valor isolado dos demais corre o risco de desequilibrar o sistema e de comprometer aquele valor que preside a coordenação de todos, qual seja, a segurança jurídica. E sem segurança não há liberdade, não há igualdade, não há legalidade, não se pode cogitar da solidariedade social, nem se pode assegurar o respeito à dignidade humana.

 

Na realidade, grandes reformas legislativas têm sido promovidas sob aplauso geral da comunidade jurídica brasileira e, de nossa parte, não deixamos de aderir a essas loas. Nossas restrições voltam-se contra o descaso, em alguns episódios, manifestado em face dos reflexos que a nova regulamentação legal possa produzir sobre a segurança jurídica.

 

Podemos ilustrar nossas preocupações com uns poucos exemplos apenas extraídos de algumas das grandes leis que recentemente afetaram as principais codificações, no direito público e no privado. Comecemos pela Carta Magna: é crônico o desprezo (que chega às raias da má-fé política) devotado à segurança dos credores do Estado, no tocante ao regime dos precatórios. Enfrentando as mazelas do sistema, a Emenda Constitucional nº. 30 concedeu até 10 anos ao Poder Público para resgatar parceladamente os débitos pendentes. Para melhorar a segurança dos credores, concedeu-se poder liberatório para efeito de pagamento de tributos às prestações que não fossem resgatadas no vencimento. Ora, se esse expediente de liquidez pôde ser adotado no acerto das prestações antigas, por que não foi adotado para todos os precatórios? A reforma que podia dar moralidade à execução contra a Fazenda Pública acabou como simples remendo. Os créditos de particulares contra o Estado continuaram, de tal sorte, desamparados pela ordem jurídica. Nada lhes assegura efetividade, situação que desmoraliza o País, porque não se conhece outra legislação que desampare tanto assim o credor da Fazenda Pública.

 

Outro exemplo flagrante de desrespeito à segurança jurídica se vê no Código de Defesa do Consumidor, editado em 1990. Nele se estabeleceu, contra a estabilidade do contrato, a possibilidade de revisão judicial de suas cláusulas “em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art. 6º, V), assim como a nulidade daquelas que se mostrem “exageradamente desvantajosas” para o consumidor (art. 51, nº. IV). Normas como essas não preservam a certeza da relação contratual, porque editadas sem a clareza necessária e sem a delimitação adequada das condições fáticas necessárias para afastar a força obrigatória do contrato, sem a qual o mundo dos negócios não encontra segurança para suas operações.  

 

No direito europeu, quando se cuida de permitir revisão de contratos de consumo, em defesa de interesses do consumidor, o tema das cláusulas abusivas é delimitado: a avaliação das cláusulas para qualificação de abusivas não alcança a determinação do objeto do contrato, nem a adequação do preço dos bens e serviços, desde que tais elementos estejam individuados de modo claro e compreensível (Código Civil italiano, art. 1.469- ter - 1º parágrafo); nem podem ser acusadas de abusivas cláusulas que reproduzem disposições de lei ou dispositivos e princípios contidos em tratados ou convenções internacionais, de que sejam partes os membros da União Européia, ou a própria União Européia (Cód. Civil, italiano, art. 1.469 - ter - 2º parágrafo). Estas disposições introduzidas no Código Civil da Itália em 1996, correspondem à Diretiva nº. 93/13/CEE, aplicável a todos os países da Comunidade Européia. Fácil é concluir que a norma vaga ou cláusula geral que trata da revisão dos contratos de consumo não é, na Europa, tão vaga como se poderia pensar. Há limites além dos quais o intérprete do contrato e o aplicador da lei não podem ir, sob pena de desnaturar o negócio jurídico e violar a autonomia negocial, comprometendo a segurança jurídica das relações de mercado.

 

No campo do direito civil, o novo Código de 2002, em nome da eticidade e da socialidade veio repleto de normas editadas de forma vaga ou como cláusulas gerais. Até aí não se pode dizer que tenha cometido infração à segurança jurídica. Mas, quando, v.g., manda restringir a liberdade de contratar aos limites da função social (art. 421), sem qualquer cuidado de relacionar tal função a parâmetros determinados e verificáveis nos casos concretos, induvidosamente implanta na ordem jurídica obrigacional fator de grande insegurança. O mesmo se passa, no terreno do direito de propriedade, quando cria uma desapropriação judicial, no art. 1.228, § 4º, totalmente fora dos padrões de tutela constitucional traçada para a utilização dos bens particulares pelo poder público em nome da utilidade pública ou do interesse social (CF, arts. 5º, XXIV e 184-186). O dispositivo nem mesmo define quem pagará o preço do imóvel expropriado pelo juiz e quando e como tal pagamento se dará. A insegurança é total, portanto, e justamente para um direito que figura entre aqueles que integram o rol dos direitos fundamentais (CF, art. 5º, XXII).

 

Na área do direito tributário, a Lei Complementar nº. 118, de 09.02.2005, nos dá um nítido exemplo de abuso normativo, criando, ao falso pretexto de editar lei interpretativa, um intolerável efeito retroativo, com o evidente propósito de alterar o sentido da regra do art. 168, I, do CTN (Lei nº 5.172, de 25.10.66), sentido este já fixado há dezenas de anos pela exegese jurisprudencial e doutrinária. Criando, portanto, verdadeira norma nova, ao alterar uma exegese largamente consolidada, o legislador não editou lei interpretativa. Criou, isto sim, direito novo e, sob o rótulo de interpretação autêntica, simplesmente legislou para o passado. Ofendeu, com isso, o mais comezinho valor contido no princípio de segurança, qual seja a vedação das leis retroativas55 .

 

Em matéria de direito processual civil, o clamor social maior é contra a morosidade da prestação jurisdicional, e para contornar essa mazela sucessivas alterações têm sido introduzidas no Código de 1973, todas justificadas com argumentos relacionados à efetividade e à celeridade do processo. Reconhecidamente a causa maior da demora processual decorre, quase sempre, de um sistema de recursos obsoleto e propício a manobras protelatórias dos litigantes de má-fé. Nada obstante, as reformas do CPC não conseguem abolir recursos (nem mesmo quando se trate de figuras estranhas e injustificáveis como os embargos infringentes e a remessa ex officio) e, ao contrário, criam cada vez mais recursos internos nos tribunais. Por outro lado, medidas que sabidamente poderiam contribuir para expurgar atos e provas desnecessários, como a audiência preliminar (art. 331, § 3º do CPC) são reformadas para pior, porque de expediente obrigatório acabou por se transformar em mera faculdade dos juízes, graças à infeliz alteração provocada pela Lei n.º 10.444, de 07.05.2002.

 

Outras inovações, como as ocorridas na legislação falimentar (Lei nº. 11.101, de 09.02.2005), foram feitas de maneira incompleta: a lei nova, v.g., limita sua aplicação ao devedor empresário, deixando de fora o devedor civil comum, quando o próprio Código Civil atual procedeu à unificação do direito privado obrigacional. Além disso, o principal objetivo da nova lei concursal - a recuperação das empresas em crise - restou disciplinado de maneira incompleta: faltaram mecanismos para sujeitar o credor tributário, de modo satisfatório, aos propósitos de recuperação de empresas; e faltaram previsões de aparelhamento judicial e administrativo, especializado e necessário, para encaminhar e viabilizar, do ponto de vista técnico (econômico, contábil, mercadológico etc.), o novo e complexo processo de recuperação.

 

A própria Reforma do Poder Judiciário (EC nº. 45), pela qual se debateu e se aguardou por mais de dez anos, acabou por decepcionar a todos. Não passou, na maioria de seus dispositivos, do campo abstrato das normas de competência. Na pura realidade, não está no âmbito das normas jurídicas a causa maior da demora na prestação jurisdicional, mas na má-qualidade dos serviços forenses. Nenhum processo duraria tanto como ocorre na justiça brasileira se os atos e prazos previstos nas leis processuais fossem cumpridos fielmente. A demora crônica decorre justamente do descumprimento do procedimento legal. São os atos desnecessariamente praticados e as etapas mortas que provocam a perenização da vida dos processos nos órgãos judiciários. De que adianta reformar as leis, se é pela inobservância delas que o retardamento dos feitos se dá?

 

A verdadeira reforma do Poder Judiciário começará a acontecer quando os responsáveis por seu funcionamento se derem conta da necessidade de modernizar e reorganizar seus serviços. O que lhes falta, e por isso os torna caóticos, é a adoção de métodos modernos de administração, capazes de racionalizar o fluxo dos papéis, de implantar técnicas de controle de qualidade, de planejamento e desenvolvimento dos serviços, bem como de preparo e aperfeiçoamento do pessoal em todos os níveis do Judiciário.

 

Essa reforma não depende de esforço legislativo e só se viabilizará quando confiada a técnicos fora da área jurídica, ou seja, a técnicos de administração. Daí o fracasso de todos os exercícios até hoje realizados no plano puramente jurídico e normativo.

 

 

9. Conclusões

A marcha de reforma e aprimoramento do ordenamento jurídico é necessária e jamais encontrará termo. Há de acompanhar o homem na sua permanente busca de aperfeiçoamento no convício social civilizado.

 

Nenhuma lei, nenhum Código pode aspirar a uma definitividade que exclua revisões, acréscimos, modificações e substituições. Integrando todas as normas jurídicas o sistema constitucional democrático, a tarefa renovadora do legislador terá de se inspirar não apenas no propósito de inserir cada vez mais valores éticos no direito positivo, pois, qualquer que seja o projeto de aprimoramento  normativo terá sempre de ser levado avante sem atritar com os grandes e fundamentais princípios formadores do alicerce da ordem constitucional. E se o Estado, em que as reformas estão ocorrendo, é como o Brasil, um Estado de direito democrático, nunca poderá o legislador reformista descurar-se  da observância das exigências da segurança jurídica, em seus vários e complexos aspectos (clareza da lei, previsibilidade de seus efeitos, confiabilidade dos destinatários nos agentes e aplicadores do direito, preservação da eficácia das relações já estabelecidas, compatibilização das regras novas com o sistema geral de organização normativa etc.). Progresso, sim, mas sem comprometer a segurança jurídica, que a Constituição consagra como fundamento do Estado de direito e como garantia fundamental dos indivíduos que vivem em seu seio e sob sua proteção.

 

É preciso não esquecer, que embora não seja absoluto - e nenhum princípio jurídico é absoluto, - “o princípio de segurança jurídica é provavelmente uma das regras mais fundamentais do direito numa sociedade e num Estado regido pelo direito”56 .

 

Finalmente, impende ressaltar que a submissão ao princípio de segurança jurídica não é exclusiva do legislador, mas cabe a todos os detentores do poder público. Tanto a Administração como a Justiça (especialmente esta) desempenham relevante papel na preservação da segurança jurídica, de sorte que suas decisões não podem aplicar as leis novas segundo interpretações ofensivas aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade e com quebra da confiança incutida aos agentes dos atos jurídicos, quanto aos efeitos normais esperados, segundo as normas e interpretações vigentes ao tempo de sua prática.57 

 

 

                                       NOTAS DE RODAPÉ    


1. “As novas e sempre crescentes atribuições do Estado intervencionista têm distorcido a cisão de certos princípios jurídicos, cuja pureza é dever de o jurista distinguir e defender. As concepções do Estado-Providência ou do Estado de Direito Social procuram privilegiar a atuação estatal, visualizada mais como realidade de fins do que como execução ex officio do Direito. Com isto, procura-se esmaecer a força do princípio da legalidade para que possa a Administração interferir no munus da tributação. Esta é uma orientação cuja perversidade cumpre combater (…). Protege-se a pessoa humana dos abusos e inconstâncias da Administração, garantindo-lhe um ‘estatuto’, onde emerge sobranceira a segurança jurídica, o outro lado do princípio da confiança na lei fiscal, a que alude a doutrina tedesca” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; LOBATO, Valter. “Reflexões sobre o art. 3º da Lei Complementar 118. Segurança jurídica e a boa-fé como valores constitucionais. As leis interpretativas no Direito Tributário Brasileiro”. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 117, p. 112).

2 . Desastrosa, entre muitas outras, foi, por exemplo, a inserção no novo Código Civil, da cláusula geral que submete a liberdade de contratar aos limites da função social do contrato (art. 421). Ora, nunca antes se cogitara de identificar uma função social na contratação dos negócios patrimoniais do direito privado. Como então impor o legislador que se observe um parâmetro desconhecido, sem indicar aos contratantes onde buscar elementos para identificá-lo e sem traçar qualquer espécie de limite a essa busca de uma função nova e inidentificada? O resultado somente poderia ser o caos doutrinário e jurisprudencial. Cada intérprete e cada aplicador usa o parâmetro que lhe é simpático e chega a limites e conclusões os mais díspares e incongruentes.

3. O STF já decidiu que “todos os atos emanados do Poder Público estão necessariamente sujeitos, para efeito de sua validade material, à indeclinável observância de padrões mínimos de razoabilidade” (...). E que a razoabilidade é exigência que se qualifica como “parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais”. Dentro dessa perspectiva o abuso de poder é possível configurar-se também no desempenho da função legislativa, dando ensejo á configuração de inconstitucionalidade. Ou seja, no entendimento da Suprema Corte, “a teoria do desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas, permite que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à instauração de situações normativas que comprometem e afetem os fins que regem a prática da função de legislar” (STF, Pleno, MC na ADI nº. 2.667-DF, Rel. Min. Celso Mello, ac. 19.06.2002, RTJ 190/875).
4 ALMEIDA, Luís Nunes de. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire Internacional de Justice Constitutionnelle, XV, 1999. Paris: Economica, 2000, p. 249. Em doutrina, J. J. GOMES CANOTILHO registra que os princípios de segurança jurídica e de proteção da confiança são elementos constitutivos do Estado de Direito (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, p. 256). Na jurisprudência há uma série de julgados, desde os tempos da Comissão Constitucional até os tempos atuais do Tribunal Constitucional, podendo exemplificar com o acórdão nº. 666/94, onde se assentou: “a segurança dos cidadãos (e sua confiança subseqüente na ordem jurídica) é um valor essencial do Estado de Direito que gira em torno da dignidade da pessoa humana - pessoa que é a base e a finalidade do poder e das instituições” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, v. 29, p. 349, apud ALMEIDA, Luís Nunes de., op. cit., p. 250). Para este último autor, a tese de que o princípio em questão se consagra como decorrência necessária do Estado de Direito Democrático, do qual participa como elemento constitutivo, configura opinião unânime da jurisprudência e da doutrina em Portugal (ALMEIDA, Luís Nunes de., op. cit., p. 250-251).


5 SPILIOTOPOULOS, Epaminondas. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire Internacional de Justice Constitutionnelle, XV, 1999. Paris: Economica, 2000, p. 193.


6 SCOFFONI, Guy. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 149. Lembra o autor que a Constituição dos Estados Unidos prevê, expressamente, a interdição para o legislador federal de adotar leis retroativas (art. I, Seção 9-3); e também proíbe os Estados, em sua área de competência, de adotar “lei retroativa” ou de enfraquecer por meio de lei “a força dos contratos” (art. I, Seção 10-1).


7 PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p.199.


8 AC de 12.9.1995, nº. 422, Foro italiano, 1995, I, p. 3.386, apud  PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 224.


9 AC de 17.12.1985, nº. 349, apud  PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 219 e 225.

10 PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 224

11 PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 225

12 ZIMMER, Willy. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 91.


13 ZIMMER, Willy, op. cit., p. 93.


 14 MATHIEU, Bertrand. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 155-156.


15 MATHIEU, Bertrand, op. cit., p. 156.


16 MATHIEU, Bertrand, op. cit., p. 191. Na doutrina tributária brasileira o princípio da segurança jurídica desfruta de grande prestígio, de sorte que a taxação que a ele não se afeiçoa, por obra do Legislativo ou da administração, incorre em abuso, excesso ou desvio de poder, violando a ordem constitucional (Cfr. Entre outros, MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 31; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 207).


17 CJCE, 14.07.72, affaire 57-69, Rec. P. 933, apud MATHIEU, Bertrand, op. cit., p. 191.


18 “A segurança jurídica em sentido geral pode ser considerada como sinônima do princípio do Estado de direito tal qual é tratado pela doutrina e jurisprudência constitucional, austríaca” (PFERSMANN, Otto. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 113).


19 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 250 apud ALMEIDA, Luís Nunes de, op. cit., p. 249-250.

20 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina, s/d, p. 256.

 

 


 

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