Onda Reformista do Direito Positivo e suas
Implicações com o Princípio
da Segurança Jurídica
1.
Introdução
O Século XX,
ao lado de ter proporcionado um ritmo de evolução tecnológica à convivência
humana sem precedentes, promoveu também uma indiscutível subversão cultural,
destruindo e abalando valores que até então sustentaram, ética e juridicamente,
a civilização cristã ocidental.
Desnorteado, o
pensador e sobretudo o jurista do Século XXI, diante da “herança” legada pelo
século anterior, não encontra valores consagrados e definidos para ditar os
rumos da ordem jurídica contemporânea, nem critérios válidos e permanentes para
imprimir-lhe eficácia e coerência. Daí a figura de uma colcha de retalhos em que
se vai transformando o direito positivo, diante da incoerência e do verdadeiro
caos em meio ao qual se realizam as reformas legislativas.
Ao mesmo tempo
que se bate pela dignidade da pessoa humana como fundamento máximo do
ordenamento, em qualquer de seus segmentos, adota-se, também, nos mais diversos
setores do direito, mesmo nos que constituem o chamado direito privado (onde
deveria reinar a autonomia e a vontade soberana do indivíduo, em nome da
liberdade, sem a qual não se pode pensar em dignidade de homem algum), a defesa
ostensiva da supremacia do público sobre o privado, do interesse social sobre o
individual. Ergue-se aos poucos um leviatã que ninguém consegue definir com
precisão e cujo desenvolvimento não se tem como antever aonde chegará.
Para servir a
esse indecifrável senhor, cuja identificação se contenta com rótulos apenas
(social, coletivo, público etc.), o indivíduo - razão de ser da sociedade, do
Estado e do direito - cada vez mais se anula e mais apreensivo e inseguro se
torna. Os valores que sua bimilenar cultura lograra conquistar esfumaçam-se,
diluem e se perdem num revolver iconoclasta e impiedoso, a que faltam idéias
sólidas e abundam palavras soltas e pensamentos irredutíveis ao anseio do
filósofo verdadeiro e decepcionantes para o destinatário comum da ordem
jurídica.
Com técnicas
de direito público, de acendrado teor socializante, sempre mais e mais, se
coarcta a liberdade individual, sem embargo de o Estado ocidental atual se
declarar fundado na livre iniciativa individual. Onde localizar a dignidade da
pessoa humana quando o indivíduo não consegue se libertar da intromissão
constante e intensa nas esferas não apenas econômicas, mas até mesmo íntimas,
personalíssimas? E cada vez mais se exige que o direito se faça presente com
força cogente e inarredável, a tal ponto que, em nome do gigante aterrorizante
do social e do coletivo, nem mais se consegue separar o direito público do
privado.
Dir-se-á:
existe a lei como garantia máxima de liberdade e independência do indivíduo
frente à sociedade e ao Estado que a representa, porque de seu império nem este
escapa. Continua a ressoar magnificamente a máxima fundamental do Estado de
Direito: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei” (C.F, art. 5º, II). No entanto, o que menos se vê no pensamento
jurídico dito pós-moderno é a preocupação com a garantia fundamental da
legalidade1 . Advoga-se
ostensivamente a supremacia de valores abstratos, por engenhosas e enigmáticas
fórmulas puramente verbais, que simplesmente anulam a importância do direito
legislado e fazem prevalecer tendenciosas posições ideológicas, sem preceitos
claros e precisos que as demonstrem genericamente e, por isso mesmo, permitem
ditar por mera conveniência do intérprete e simples prepotência do aplicador o
sentido que bem lhes aprouver nas circunstâncias do caso concreto.
Direito não é
mais sinônimo de lei, e norma ou preceito não mais se distinguem dos princípios.
Assim, em nome de pretensos princípios, que muitas vezes não se sabe se existem
realmente nem de onde foram extraídos, se cria todo um clima de permissividade
para o operador do direito. Totalmente descompromissado com a lei ditada pelo
poder legiferante instituído, o aplicador do direito procura a regra a aplicar
no caso concreto onde bem lhe convier, ou onde bem entender, pois fora do
preceito explícito da lei, sempre haverá algum raciocínio, algum argumento,
alguma justificação para explicar qualquer tipo de decisão, até mesmo aquele
aberrante com as tradições histórico-culturais de um povo, as quais, aliás,
pouco ou nada valem para a mentalidade emergente do século XX, em segmento
quantitativamente expressivo.
O próprio
legislador, em quem os indivíduos pensavam poder confiar para, na votação livre
e democrática das leis, estabelecer os limites do autoritarismo do poder
governante, abdica simplesmente da competência de traçar, com precisão e
segurança, os preceitos que deveriam presidir o comportamento individual no seio
da coletividade. Preferem, por comodidade, por menor esforço, ou por submissão a
idéias de momento e de puro efeito demagógico, legislar por fórmulas
excessivamente genéricas (cláusulas gerais, normas abertas e quejandas).
Aproximando-se de meras declarações de valores (indefinidos e
indefiníveis), essa conduta inaceitável, e por isso mesmo, injustificável do
legislador contemporâneo, deixa o indivíduo (cuja dignidade diz estar tutelando)
entregue à sanha e aos azares de quem detém o poder de julgar a conduta
individual e social.
Não se
pretende negar o valor dos princípios éticos que podem e devem atuar na
formulação das regras legais e em sua interpretação, por parte dos juristas e
magistrados. Tudo isto, porém, deve ser feito de modo ponderado, deixando
estipulado de maneira clara até onde, até que limites, um valor hermenêutico
pode ser adotado na compreensão prática do preceito legal.
Legislar com
excesso de cláusulas gerais e por meio de “chavões” que nada dizem (mas que tudo
permitem seja dito em seu nome) representa uma verdadeira traição ao ideário do
Estado Democrático de Direito. Se este se caracteriza pela defesa dos indivíduos
e seus direitos por meio de uma necessária separação entre funções atribuídas
aos diversos órgãos encarregados do exercício dos poderes inerentes à soberania
estatal, só se pode divisar governo autoritário e ditatorial quando um mesmo
órgão acumula as funções de legislar e aplicar a lei por ele mesmo criada.
Seja o
Executivo, seja o Judiciário, acumulando numa só mão o poder de legislar e
aplicar a norma legal, o Estado foge do programa estatuído pela Democracia, que
só se implanta com efetividade quando os poderes soberanos do Estado são
despenhados por órgãos independentes e harmônicos entre si, cada qual
respeitando a função do outro e exigindo que na sua função não ocorra ingerência
dos demais.
Se, com leis
formuladas axiologicamente e traduzidas excessivamente em cláusulas gerais e
normas vagas, caberá ao juiz de fato definir o sentido e alcance da lei, na
verdade só se firmará o teor da norma legal depois que o julgador atribuir-lhe o
resultado que entender de conferir-lhe. A lei, na realidade, só existirá como
preceito depois que o juiz completar a normatização apenas iniciada pelo
legislador. O jurisdicionado somente virá a conhecer a regra de cuja violação é
acusado depois de julgado pela sentença. Isto representa, em termos crus, uma
verdadeira eficácia retroativa para a norma. Se ela só se fez completa e
inteligível após o julgamento do fato, a conseqüência é que a norma tal como foi
aplicada não existia ao tempo da ocorrência do mesmo fato. Ou, pelo menos, o seu
destinatário somente a pôde conhecer, em toda extensão, depois da sentença.
Para que essa
injustiça não seja cometida é indispensável que a norma não seja excessivamente
em branco, nem seja imprevisível quanto ao modo e aos limites de preenchimento
de sua previsão genérica. Pode-se legislar deixando margem de flexibilidade para
adaptar-se às particularidades do caso concreto. Mas, em nome da legalidade e da
segurança jurídica com que a legalidade se acha visceralmente comprometida é
imperioso que o legislador, ao empregar a flexibilidade da cláusula geral
indique de forma clara e precisa os padrões e os limites da atividade
complementar do juiz. Vale dizer, a cláusula geral só é legítima e democrática
quando o legislador indica os parâmetros em que, na aplicação, terá de apoiar-se
e quais limites dentro dos quais a norma admitirá flexibilização. Em outros
termos, a lei terá de proporcionar às pessoas destinatárias de seu preceito o
conhecimento e a compreensão do seu teor e dos seus limites2 .
Essas
ponderações, nós as fazemos porque o clima legislativo oriundo do final do
Século XX acha-se dominado por um furor normativo. Implantou-se a mentalidade de
que reformando as leis o Estado melhoraria no exercício do governo da sociedade
e esta aprimoraria seus critérios e valores de comportamento intersubjetivo.
Esquece-se de
que ética é produto cultural e não jurídico. É um dado, portanto, apriorístico,
que se estabelece ao longo da história na consciência social até alcançar o
nível de exigir das pessoas e do próprio Estado a necessária submissão. Não se
impõe um valor ético criado em laboratório por juristas inteligentes. Para a lei
absorver um valor ético é preciso que já tenha sido ele chancelado pelos usos e
costumes sociais. Mas, como procurar um valor cultural consagrado numa sociedade
despida de valores e insubmissa a padrões limitativos das liberdades
individuais, e que, a grosso modo, repele qualquer tipo de censura no modo de
conceber o mundo, o homem, seu papel e seu destino?
É essa
tempestade de ventos e torrentes em entrechoque nas reformas constantes e
profundas por que passa o direito positivo de nossos dias que nos convida a
meditar e ponderar sobre um princípio, um valor, um fundamento, do qual não se
pode prescindir quando se intenta compreender a função primária da normatização
jurídica. Trata-se da segurança jurídica, que nosso legislador
constituinte originário, colocou como uma das metas a ser atingida pelo Estado
Democrático de Direito, ao lado de outros valores igualmente relevantes, como a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça, todos eles guindados à categoria de “valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social” (Preâmbulo da
Constituição de 1988).
O receio (e a
quase certeza) de que o propalado furor reformista não se revela preocupado com
o problema da segurança jurídica, nem se arrefece diante das desastrosas
conseqüências das inovações normativas sobre a estabilidade da ordem jurídica e
dos relacionamentos travados entre os jurisdicionados, e entre estes e o Estado,
foi que nos motivou a fazer algumas divagações em torno do tema, cuja sede
natural é o direito constitucional. Como no Estado constitucional democrático
nenhum segmento do direito, seja público ou privado, pode ser bem compreendido
longe das luzes e dos princípios constitucionais, penso que os processualistas e
civilistas de nosso tempo necessitam arrefecer seu ânimo renovador para
refletir um pouco mais sobre os destinos de nosso ordenamento jurídico. Somente
guiada pelos faróis principiológicos adotados pela Constituição, a marcha
reformista terá condições de prosseguir de maneira segura e serena. Urge evitar
a reforma pela reforma, as mudanças inócuas que afetam apenas formas verbais sem
alterar o fundo ou a substância das normas e, acima de tudo, não se pode, de
maneira alguma, desestabilizar o sistema vigente e comprometer, sem razão
aceitável e explícita, os valores fundamentais que o informam, com raízes
sólidas no plano da Constituição3 .
É nesse plano
que devemos voltar os olhos para a segurança jurídica antes de advogar
qualquer reforma legislativa e antes de agredir, às vezes, desnecessariamente,
outras vezes, de maneira desastrosa, o direito positivo e o sistema que o
preside.
2.
Segurança jurídica: Vínculo com o moderno Estado comprometido com a garantia dos
direitos fundamentais
A Constituição
brasileira consagra o princípio da segurança jurídica em mais de uma
oportunidade. Já no preâmbulo se anuncia que o Estado democrático de direito, de
que se constitui a República Federativa do Brasil, está destinado a garantir,
entre outros direitos fundamentais, a segurança. Esta, ao lado de outros
direitos da mesma estirpe, se insere no rol dos “valores supremos de uma
sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social”.
Também no caput do art. 5º, a declaração dos direitos e garantias
fundamentais tem início com a proclamação de que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a todos os residentes no país a inviolabilidade do
direito à segurança e à propriedade. Esse compromisso do Estado de
direito com o princípio de segurança, aliás, não é uma peculiaridade da
República brasileira. Todo o constitucionalismo ocidental de raízes européias o
adota e exalta.
Em Portugal, v.g., embora a Constituição não consagre de maneira direta e textual o princípio da segurança jurídica, no enunciado dos fundamentos do Estado
de direito democrático (art. 2º), doutrina e jurisprudência estão acordes em
que dito princípio “decorre necessariamente da idéia de Estado de direito e,
assim, o têm por consagrado pela Constituição”4 .
Não é
diferente o posicionamento do direito grego, segundo o qual “o princípio da
segurança jurídica é um elemento substancial do Estado de direito, que é o
fundamento jurídico da dignidade humana, que o Estado democrático deve respeitar
e proteger”5 .
Tal como se
passa em Portugal, também na Constituição dos Estados Unidos não há uma expressa
menção ao princípio da segurança jurídica. A jurisprudência, no entanto,
chega à segurança jurídica indiretamente, por meio da aplicação da exigência de não-retroatividade e do respeito à cláusula do due process. Pode-se, então, alcançar à concepção, por via jurisprudencial, de que o
princípio de segurança jurídica também é visto como “um componente essencial” do
Estado de direito e que “o sistema constitucional americano não ficaria
realmente fora de suas exigências”6 .
Na Itália, em
que o princípio da legalidade sofreu pesados comprometimentos durante o regime
fascista, quando o autoritarismo e arbitrariedade fizeram escola, a doutrina
contemporânea valoriza o princípio da segurança jurídica, fazendo-o corresponder
à idéia de “certeza de direito”7 .
Na concepção jurisprudencial muito se tem discutido a propósito do tema e, mesmo
no silêncio da Constituição, a Corte Constitucional italiana já proclamou que a
“segurança jurídica é de fundamental importância para o funcionamento do Estado
democrático”8 , e que deve
ser definida como “um princípio supremo”, ao afirmar que “a confiança do cidadão
na segurança jurídica constitui um elemento fundamental e indispensável do
Estado de Direito”9 .
Goze ou não do
elevado grau de princípio supremo, na ordem constitucional italiana, o certo é
que o princípio de segurança jurídica na doutrina e jurisprudência daquele país
ocupa uma posição superior à de simples princípio geral de direito. A segurança
jurídica insere-se numa ordem superior, para desfrutar do status de “um
princípio constitucional não-escrito, que pode interligar-se com diversas
exigências e com diversos outros princípios”10 ,
e que , na realidade, desempenha um papel de “importância fundamental para o
funcionamento do Estado de direito democrático”11 .
Na Alemanha,
onde em passado de lastimável memória se ofenderam profundamente as idéias de
liberdade e dignidade humana, seu atual direito constitucional, voltado para o
resgate da democracia e dos direitos da personalidade, atribui à segurança
jurídica o status de um princípio, mais precisamente de um imperativo (Gebot der Rechtssicherheit) portador de um valor constitucional.
Não se trata de um valor próprio, mas algo derivado do princípio geral do Estado
de direito, no sentido da Lei Fundamental. Ou seja: “o princípio de segurança
jurídica é um elemento essencial, com a justiça (Gerechtigheit),
do princípio do Estado de direito e tem, por conseguinte, como todos os
elementos estruturadores da noção do Estado de direito, um valor constitucional.
Isto decorre de uma concepção teórica mais global da liberdade individual e da sociedade liberal que é aquela onde se nutre a democracia. No seio desta
sociedade onde a liberdade individual se determina a ser um valor de referência
e onde o Estado de direito se empenha a ser a garantia, a segurança jurídica
aparece como um componente essencial de tal proteção”12 .
A tal
princípio - é bom dizer - não faz menção expressa a Constituição alemã. Sua
feição constitucional irrecusável, no entanto, deriva da própria concepção da
noção do Estado de direito concebido como forma institucional da Alemanha nos
termos do art. 20 de sua Lei Fundamental. O princípio de segurança jurídica é
considerado, no mesmo nível que a justiça, como elemento essencial, da noção de
Estado de direito13 .
O princípio de
segurança jurídica, principalmente em razão da valorização dos direitos do homem
no seio do direito comunitário, encontra grande sucesso no direito francês.
Tem-se a consciência de que a segurança jurídica acompanha os desdobramentos da
noção de Estado de direito e atende às exigências de segurança impostas em face
do desenvolvimento de um ambiente cada vez mais complexo e sujeito a evoluções
cada vez mais incertas. Assim como o meio ambiente reclama atenção científica
eficiente, o meio social também exige do legislador, para evitar penalizações
excessivas, “regras jurídicas que sejam simples, claras, acessíveis e
previsíveis”14 .
A presença do
princípio da segurança jurídica no direito constitucional francês é interpretada
como fruto da evolução do Estado de direito de um sistema formal para um sistema
que contém exigências materiais. Liga-se ao novo Estado em que se enfraquece o
princípio da democracia majoritária e se reforça o sistema dos direitos
fundamentais. Essa evolução busca superar a visão de um sistema fundado
unicamente sobre o respeito à hierarquia das normas jurídicas para se interessar
pelo conteúdo dessas normas. Diz-se então que o Estado de direito se organiza
por meio de um sistema político e jurídico voltado para a proteção dos direitos
fundamentais. É nesse Estado de direito preparado para tutelar os direitos
fundamentais que aos princípios clássicos da separação dos poderes, da
legalidade e da proporcionalidade, se agrega o princípio da segurança jurídica,
dentro das exigências materiais do atual Estado de direito15 .
Nos
julgamentos do Conselho Constitucional da França, a propósito principalmente do
princípio que exige a clareza e a precisão da lei, é que se revelam a
importância e a natureza do princípio de segurança jurídica. E nele se vê “uma
exigência constitucional”. Essa mesma ótica prevalece quando se trata da
jurisprudência relativa à retroatividade das leis fiscais, classificando a
irretroatividade, na espécie, como uma das imposições da segurança jurídica, a
que se atribui a natureza de “uma das exigências constitucionais”16 .
Esse
posicionamento do direito constitucional francês afina-se com todo o nível do
direito comunitário europeu. Com efeito, “o princípio de segurança jurídica foi
erigido pela Corte de justiça das comunidades européias ao grau de exigência
fundamental”17 .
3. Noção
de segurança jurídica
O Estado
democrático de direito conta com os princípios de “segurança jurídica” e de
“proteção da confiança” como elementos constitutivos da própria noção de “Estado
de direito”18 . A partir
dessa constatação, Canotilho ensaia a conceituação do que ele denomina
“princípio geral de segurança jurídica”, em seu sentido mais amplo, e que
compreende também a idéia de “proteção da confiança”. Para o grande
constitucionalista português, esse princípio geral pode ser assim enunciado:
“Os indivíduos têm o direito de
poder contar com o fato de que aos seus atos ou às decisões públicas
concernentes a seus direitos, posições ou relações jurídicas fundadas sobre
normas jurídicas válidas e em vigor, se vinculem os efeitos previstos e
assinados por estas mesmas normas” .19
Completa,
Canotilho sua conceituação, sublinhando que o princípio de segurança jurídica exige “a confiabilidade, a clareza, a razoabilidade e a transparência dos atos
do poder”, para, em seguida, revelar as mais importantes manifestações desse
princípio:
“(1) Relativamente a actos
normativos – proibição de normas retroactivas restritivas de direitos ou
interesses juridicamente protegidos; (2) relativamente a actos jurisdicionais -
inalterabilidade do caso julgado; (3) em relação a actos da administração -
tendencial estabilidade dos casos decididos através de actos administrativos
constitutivos de direitos” .20
A
jurisprudência da Corte Constitucional portuguesa, porém, não limita a
incidência do princípio da segurança jurídica, em matéria de atos normativos,
apenas à defesa contra os efeitos retroativos. Exige também que as leis sejam
formuladas segundo a exigência de precisão e clareza de seus
preceitos, chegando a conceber um princípio que denomina de “princípio de
determinabilidade das leis”21 .
Há dois
sentidos, segundo certos autores, a serem distinguidos no conceito de segurança
jurídica: a) a segurança que deriva da previsibilidade das decisões que
serão adotadas pelos órgãos que terão de aplicar as disposições normativas; e b)
a segurança que se traduz na estabilidade das relações jurídicas
definitivas22 .
Entre os
doutrinadores brasileiros, o princípio da segurança jurídica tem provocado, no
campo do direito tributário, estudos excelentes. É que, numa área delicada como
a do direito tributário, maior é a exigência de cuidados com a observância da
segurança jurídica porque a taxação da atividade individual interfere
significativamente na viabilidade, no planejamento e na gestão das empresas e
dos patrimônios das pessoas físicas ou jurídicas. Vários princípios
constitucionais atuam na espécie a fim de assegurar aos contribuintes a
“tranqüilidade, confiança e certeza quanto à tributação”, como o “princípio da
legalidade”, “da anterioridade da lei ao exercício de sua aplicação” e da
“irretroatividade da lei tributária, salvo para beneficiar o contribuinte”23 .
Tudo isto
conjugado delineia o modo global de atuar o princípio da segurança jurídica que
haverá de ser respeitado pelo legislador, pelo fisco e pela justiça, de modo a
propiciar sempre aos contribuintes condições de conhecer, com adequada
antecedência e “com certeza e segurança a que tipo de gravame estarão sujeitos
no futuro imediato, podendo, dessa forma, organizar e planejar seus negócios e
atividades24 ”.
A fiel
observância do princípio da segurança e da confiança, no caso da legislação
tributária, faz cessar, por parte do Estado “a improvisação, a
irresponsabilidade e o imediatismo com que muita vez os governos autoritários
praticam a tributação, ao arrepio dos mais comezinhos princípios jurídicos,
desorganizando a economia e desorientando a comunidade”. Ao contrário, e como é
de se desejar, o respeito aos aludidos princípios, por parte dos governantes
acarreta efeitos de suma importância em matéria de tributação: (a) assegura aos
governados tranqüilidade, confiança e certeza quanto à tributação;
(b) assegura ao governo o respeito dos governados; e (c) compartilha o
governo com o parlamento a responsabilidade pelos rumos da política
tributária, como sói acontecer nas verdadeiras democracias”25 .
O primeiro
cuidado a ser tomado pelo legislador, para garantir segurança jurídica aos
indivíduos, é o da publicidade adequada, em que se inclui o período de vacatio legis compatível com a necessidade de conhecer a lei nova a
tempo de adaptar-se aos seus preceitos inovadores. Mas, acima da publicidade, há
também, na consciência jurídica italiana, a convicção de que é fundamental o
problema ligado à exigência de que os atos normativos sejam redigidos de modo a
serem “compreensíveis pelos destinatários”26 .
Com efeito, a “maneira mais eficaz de reduzir consideravelmente a ‘insegurança’
jurídica é, mesmo, a de redigir os textos normativos à base de regras claras e
estandardizadas” (segundo padrões técnicos)27 .
Além disso, impõe-se outro tipo de cuidado técnico para fugir da insegurança
jurídica: tem-se de evitar o caos dentro do sistema geral do ordenamento
jurídico. A lei nova não pode desorganizar o sistema, criando contradições ou
dificuldades insuperáveis de compatibilização e interpretação, levando o
aplicador e o destinatário a perplexidades e conflitos graves e de difícil
solução. “A exigência de uma redação mais clara dos textos normativos vem, pois,
juntar-se à exigência de coordenar os textos a fim de dar à administração, e
também aos cidadãos, os meios de melhor conhecer o direito positivo”28 .
Em nome do
princípio da segurança jurídica, condena-se também a “doença do excesso de
direito”, ao argumento de que a “hipertrofia” das leis acaba por produzir um
cipoal de regras cuja aplicação, na prática, ao invés de organizar o
comportamento social, torna-o exageradamente complexo. A inflação normativa, que
dificulta a todo instante a constatação de quais são as normas realmente em
vigor, não contribui, evidentemente para os indivíduos terem uma noção clara e
precisa de seus direitos e deveres29 .
4. Leis
vagas, imprecisas e cláusulas gerais
Por simples
modismo e, às vezes por comodismo, o legislador contemporâneo é levado à edição
de normas incompletas e vagas, que importam em verdadeira delegação de poder
normativo aos órgãos da administração e do Judiciário. Não que se deve impedir a
adoção de cláusulas gerais nos textos legislativos. Valores éticos, para serem
incorporados ao direito positivo reclamam a observância dessa técnica. O abuso,
contudo, do emprego constante e injustificado de cláusulas gerais pelo
legislador pode desestabilizar o ordenamento jurídico, gerando dúvidas,
incertezas e mesmo imprevisibilidade no meio social.
Há na
deturpação dessa técnica uma tendência do parlamento de despojar-se, em boa
parte, de sua competência legislativa, relegando ao Judiciário completar a
tarefa normativa, sem que os indivíduos possam prever, com segurança jurídica,
como o órgão aplicador da regra vaga irá colmatá-la. É necessário, logicamente,
coibir esse tipo de abuso legislativo, para evitar que, de fato, o juiz
se torne legislador; e o que é pior, legislador, ex post facto, pois a lei só será ditada em seu conteúdo completo e definitivo depois de
consumado o fato sobre que irá incidir. A segurança jurídica, por sua vez, não
pode conviver com problemas desse porte. É fundamental, para ter-se uma ordem
jurídica como consagradora do princípio de segurança jurídica que, primeiro se
observe a separação de poderes entre legislador e juiz, e depois que a norma
criada pelo primeiro somente seja aplicada pelo segundo aos fatos supervenientes
à sua edição. É o que proclama a Suprema Corte Norte-Americana, quando insiste
na necessidade de interditar “as ex post facto laws, para,
assim, permitir [sempre] aos indivíduos terem um conhecimento prévio e estável
das leis às quais devem se submeter e das penas às quais se expõem”30.
Se bem que o
legislador possa às vezes lançar mão de “conceitos indeterminados” ou de
“cláusulas gerais”, o certo é que, para restringir, suprimir ou modificar
direitos, liberdades ou garantias, e sempre que autorizar ação discricionária da
Administração, “deverá, necessariamente, fazê-lo por meio de lei que compreenda
um minimum de critérios objetivos, que possam servir de limites da
liberdade de escolha da Administração [e da Justiça], de tal modo que os
cidadãos possam contar com um quadro legal claro e seguro quanto à
previsibilidade das opções da Administração e, ao mesmo tempo, que os tribunais
possam ter elementos objetivos suficientes para emitir um julgamento sobre a
legalidade das decisões administrativas”31 .
O Estado de
direito democrático, ao inserir em seus fundamentos o princípio de segurança
jurídica, impõe sejam os atos normativos editados com precisão ou determinabilidade. Equivale dizer, segundo Canotilho, que há, de um lado, a
exigência de “clareza das normas legais”, e, de outro, reclama-se “densidade
suficiente na regulamentação legal”32 ,
que nem sempre se revela compatível com o emprego de cláusulas gerais, se não se
resguarda um mínimo de concretude. Para o constitucionalista, o ato legislativo
“que não contém uma disciplina suficientemente concreta (= densa, determinada)
não oferece uma medida jurídica capaz de: (1) alicerçar posições juridicamente protegidas dos cidadãos; (2) constituir uma norma de actuação para a administração; (3) possibilitar, como norma de controlo, a
fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos”33 .
Em abordagem
direta das normas vagas e cláusulas gerais, adverte Canotilho:
“Como é de intuir, a natureza
da lei - aberta ou indeterminada, precisa ou concreta - tem muito a ver com as
relações de legiferação de aplicação da lei. A indeterminabilidade e abertura da
lei poderá ser justificada pelo facto de o legislador se querer limitar a leis
de direcção e deixar à administração amplos poderes de decisão. Isto já foi
observado: a indeterminabilidade normativa significa, muitas vezes, delegação da
competência de decisão. A determinabilidade ou indeterminabilidade é, pois, um
problema de distribuição de tarefas entre o legislador e o aplicador ou executor
das leis. O controlo destas “normas abertas” deve ser reforçado. Elas podem, por
um lado, dar cobertura a uma inversão das competências constitucionais e legais;
por outro lado, podem tornar claudicante a previsibilidade normativa em relação
ao cidadão e ao juiz. De facto, as cláusulas gerais podem encobrir uma “menor
valia” democrática, cabendo, pelo menos, ao legislador, uma reserva global dos
aspectos essenciais da matéria a regular. A exigência da determinabilidade das
leis ganha particular acuidade no domínio das leis restritivas ou de leis
autorizadoras de restrição”.34
5.
Exigências de qualidade e previsibilidade para a obra do legislativo
O princípio de
segurança jurídica, que na verdade, é o resumo de um complexo de outros
princípios constitucionais, é desdobrado por Bertrand Mathieu em dois grandes
grupos de exigências, que vão desde a forma até a substância das normas editadas
pelo legislador democrático.
Assim, a
exigência de qualidade forma um dos grupos e a exigência de previsibilidade configura o outro grupo. Em nome da exigência de qualidade
da lei atuam o “princípio da clareza”, o “princípio da acessibilidade”, o
“princípio da eficácia” e o “princípio da efetividade”. No tocante à exigência
de previsibilidade da lei, arrolam-se o “princípio da não-retroatividade”, o
“princípio da proteção dos direitos adquiridos”, o “princípio da confiança
legítima” e o “princípio da estabilidade das relações contratuais”.
Diante de tal
quadro principiológico, Bertrand Mathieu sintetiza o primeiro grupo de
exigências ditadas pela segurança jurídica como revelador, da “qualidade da
lei” que se torna “uma exigência constitucional” determinada pela
necessidade de o juiz exercer “controle sobre os elementos formais do texto
normativo que lhe é submetido”. De outro lado, a segurança jurídica implica uma “certa previsibilidade da legislação”.
Isto porque a
segurança jurídica não é outra coisa senão a possibilidade reconhecida pelo
operador econômico, fiscal, e por todos os juridicionados, de um meio jurídico
seguro, posto ao abrigo das áleas e reviravoltas eventualmente ocorridas nas
regras do ordenamento jurídico35 .
Em outros termos, o legislador deve estabelecer e manter regras segundo as quais
o particular, ao praticar atos jurídicos, possa se comportar com previsão de
seus efeitos e com confiança naquilo que o ordenamento lhe proporcionou36 .
Em relação à
qualidade da lei (em seu aspecto formal), cujo ponto de partida é a clareza de seu texto, a jurisprudência constitucional francesa a relaciona com a
necessidade de posturas normativas caracterizadas pela sinceridade e lealdade.
Para que os particulares possam se organizar e atuar com segurança jurídica é
necessário, no Estado de Direito, que as leis sejam redigidas de maneira
suficientemente “clara e precisa”37 .
Lembra Mathieu que a França já foi condenada pela Corte Européia dos Direitos do
Homem, em julgamento de 24 de abril de 1990, por ter editado leis imprecisas
sobre escutas telefônicas, que, por isso, não respeitavam a segurança jurídica,
no pertinente à acessibilidade e previsibilidade do direito38 .
O Conselho
Constitucional da França, por seu turno, também já consagrou em diversos casos o
princípio da clareza e precisão da lei como “exigência imposta pelo princípio de
segurança jurídica”39.
Em Portugal, o
Tribunal Constitucional considerou, em diversas ocasiões, ofensivas às garantias
constitucionais do Estado de direito democrático leis que não satisfaziam, em
determinadas matérias, o grau de exigência de determinabilidade e precisão do
direito; o mesmo ocorrendo com leis que adotavam cláusulas gerais ou conceitos
indeterminados, sem respeitar um mínimo de critérios objetivos para delimitar a
discricionariedade do aplicador da norma40 .
Em doutrina, Canotilho registra, a propósito, que o respeito aos postulados da
segurança jurídica, na realidade não é exigível apenas do legislador. Também de
todos os demais detentores do poder - Executivo e Judiciário - os ditames da
segurança e da proteção da confiança são exigíveis. O mesmo faz Willy Zimmer, em
relação ao direito alemão, quando observa que “os atos das autoridades
judiciárias e, mais particularmente as decisões de justiça, devem também
revestir-se de um caráter seguro e mais genericamente ser submetidas ao respeito
do princípio de segurança jurídica”41 .
E Nunes de Almeida acrescenta, voltando ao direito lusitano, que são eles
exigíveis por parte de qualquer pessoa, física ou moral, privada ou pública42 .
Para Willy
Zimmer, “a confiança é considerada como conceito de base da democracia.
Constitui o fundamento moral da democracia representativa (que começa com o
mandato dos eleitores aos eleitos) e se propaga como fundamento de todas as
relações travadas pelos cidadãos e os poderes públicos”43 .
No domínio do
princípio da segurança jurídica, Zimmer insere a exigência de clareza do
direito, porque sem ela o destinatário da lei não tem como conhecer
razoavelmente o comando normativo, o que compromete a perspectiva de
previsibilidade e certeza de seu respeito e pode até chegar ao plano da
invalidade jurídica44 .
No Brasil, a
Constituição preocupou-se com a técnica legislativa e, para afastar o risco de
leis ofensivas aos princípios da segurança jurídica e da confiança, determinou a
edição de lei complementar para regulamentar “a elaboração, redação, alteração e
consolidação das leis” (CF, art. 59, parágrafo único). A Lei Complementar que
cumpriu o preceito constitucional é a de nº. 95, de 26.02.1998. Dentre suas
diversas normas, figura a imposição de observância de princípios importantes,
para assegurar a certeza, confiança e previsibilidade, como a exigência da
limitação de cada lei ao tratamento de um único objeto e a vedação de inclusão
de matérias estranhas a seu objeto, assim como a interdição do disciplinamento
do mesmo assunto em mais de uma lei (art. 7º); cuidou, ainda, de exigir, como
regra a explicitação do prazo de vigência da nova lei, fixado de maneira a
contemplar sempre “prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento”,
reservada a vigência a partir da publicação apenas “para as leis de pequena
repercussão (art. 8º); finalmente, determinou-se a abolição da cláusula
“revogadas as disposições em contrário”, devendo a cláusula de revogação
“enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas” (art.9º).
Quanto ao texto das disposições legais, a Lei Complementar nº. 95, determina
sejam elas “redigidas com clareza, precisão e ordem lógica” (art. 11, caput).
Traçaram-se, ainda, minuciosos dispositivos, para recomendar providências
redacionais voltadas para a “obtenção de clareza” (inc. I), “de precisão” (inc.
II) e “de ordem lógica” (inc. III).
O legislador
brasileiro, portanto, está ciente das exigências necessárias para dotar o País
de leis elaboradas com observância de requisitos técnicos e jurídicos capazes de
compatibilizar o direito positivo nacional com o princípio constitucional
democrático de segurança jurídica45 .
A exigência de
submissão do legislador à clareza e precisão da lei pressupõe, entre outras
cautelas, que a norma “não utilize cláusulas gerais vagas ou noções
jurídicas imprecisas”, ainda na lição de Zimmer. Isto, como já se anotou,
não impede que cláusulas gerais sejam utilizadas para introduzir na lei valores
éticos. O que não se admite é o recurso a cláusulas excessivamente vagas que não
dêem ensejo a interpretações seguras. É preciso que mesmo na generalidade, a
cláusula seja “explícita, sem ambigüidades, coerentes e que seu conteúdo
verdadeiro possa ser conhecido por um trabalho de interpretação razoável”46 .
6.
Relatividade do princípio de segurança jurídica
Nenhum
princípio no campo do direito, nem mesmo nos domínios constitucionais, pode ser
visto e aplicado como absoluto. A segurança jurídica, ainda que mereça a
qualificação de elemento natural e necessário do Estado de direito democrático,
não escapa à relatividade inerente á sistemática dos princípios de direito. É
que os princípios, na sua essência não traduzem preceitos mas, sim, valores, os
quais, por natureza, são elásticos, sem contornos e limites precisos, e exercem
muito mais sua função no terreno da hermenêutica do que no campo das normas,
estas, sim, encarregadas de traçar regras claras e precisas sobre o
comportamento dos sujeitos de direito.
Dada a
plasticidade dos princípios, dentro de qualquer ramo do direito, inevitáveis são
os confrontos, as colisões e as superposições entre eles. Daí a formulação de
novos princípios ou critérios especialmente concebidos para administrar e
solucionar a convivência entre os diversos valores axiológicos, nas crises
oriundas de concorrência entre eles. É a partir das idéias de proporcionalidade
e razoabilidade que se logra a harmonização entre os princípios quando se
colocam em linha de colisão. Não se trata simplesmente de desprezar um princípio
e dar total supremacia ao outro. O que o intérprete deve procurar é o equilíbrio
entre eles, demarcando, diante das circunstâncias do caso, até que ponto deve ir
a força de cada um dos princípios cotejados. Na maioria das situações será
possível aplicar, por parte ou etapas, ambos os princípios concorrentes,
tornando mais aparente que real o conflito. Em outras, a natureza dos interesses
a tutelar está, na realidade, sob o domínio específico de apenas um dos
princípios, de maneira que o outro, que se pretendeu também aplicar, deveria ser
afastado de cogitação.
O legislador
quando insere novas regras, alterando o ordenamento jurídico, nesse quadro de
respeito aos princípios deverá estar jungido às implicações da segurança
jurídica, mas terá de atentar para os anseios das necessidades sociais, que
reclamam revisão e aperfeiçoamento de certas instituições de direito. Os
interesses individuais até então tutelados são relevantes, mas não podem
permanecer estáticos e intocáveis. Valores constitucionais superiores podem
estar em jogo, justificando, pela sua transcendência, alterações normativas
aparentemente enfraquecedoras da garantia de segurança jurídica.
Há, sem
dúvida, fatores e situações que, conjunturalmente, comprometem a força protegida
pela segurança jurídica e recomendam a prevalência de outro princípio, também,
de estatura constitucional. É certo, pois, que o princípio de segurança jurídica
não se apresenta como um princípio de valor absoluto. Ao contrário, “uma
de suas características é ser modulável em função de outros imperativos, de
outros componentes da noção de Estado de direito”, cabendo ao legislador (sobre
controle da Corte Constitucional) “operar essa conciliação entre os diferentes
imperativos e a segurança jurídica”47 .
Por exemplo,
na ordem normativa o valor máximo é o da regra constitucional, que, uma vez
violada acarreta imediatamente a invalidade da norma infraconstitucional
ofensiva à supremacia da Lei Maior48 .
No entanto, a lei prevê situações em que a segurança jurídica, em setores
sensíveis a relevantes valores de ordem pública ou excepcional interesse social,
recomenda tenha a decretação de inconstitucionalidade efeito apenas para o
futuro (ex nunc), preservando, assim, os efeitos da regra inválida
anteriormente produzidos49 .
Assim, a segurança jurídica, de alguma forma, pode suplantar até mesmo o
princípio da constitucionalidade.
São clássicos
e corriqueiros, por outro lado, exemplos em que a garantia constitucional de
segurança jurídica traduzida na coisa julgada pode ser superada pelo princípio
de justiça. É o que se passa nos diversos casos em que a sentença transitada em
julgado se submete à ação rescisória. Segurança jurídica e justiça (eqüidade)
são, aliás, os dois elementos principais da idéia de direito, segundo ressalta
Radbruch. Ambos são essenciais aos fundamentos do Estado de Direito. A ordem
jurídica constantemente procura harmonizá-los. Exigências de casos concretos, no
entanto, podem contrapor ditos princípios a fundamentos de maneira a gerar um
antagonismo. “Um conflito entre as duas exigências é às vezes inevitável” e,
então, “a prioridade dada à segurança pode eventualmente contrariar uma solução
de justiça. A justiça é impossível sem a segurança jurídica, mas, este
imperativo pode ser também uma ameaça para a justiça material”50 .
O legislador é
aquele a quem compete orientar os sujeitos de direito para descobrir qual o
princípio a prevalecer nas situações conflituosas, se o de segurança se o de
justiça. Se não o fizer arbitrariamente, sua solução normativa, necessária
evidentemente, não será criticado ou censurado do ponto de vista constitucional.
Deverá,
contudo, existir na ordem dos interesses constitucionalmente protegidos, um
valor que justifique a quebra da segurança jurídica. Sem que se depare com esse
tipo de razão, enraizada nos valores constitucionais, a lei nova
desestabilizadora das situações protegidas pelo princípio de segurança jurídica,
assume o caráter, para seus destinatários, de onerosidade excessiva,
inadmissível ou intolerável, porque injustificável e arbitrariamente terá
ofendido situações constitucionalmente tuteladas e que apenas sob regência de um
critério de proporcionalidade deveriam se submeter ao outro princípio que não o
da segurança jurídica51 .
Não é -
repita-se - por arbitrária opção legislativa que se pode invadir e quebrar a
segurança jurídica. A proteção da segurança jurídica só se esvai quando se
depara com a necessidade de proteção de outros princípios classificados como
supremos na estrutura do Estado de direito democrático. “Posto que fundamental
para a existência efetiva de um Estado de direito, a segurança não tem
proporções para prevalecer sobre os elementos que lhe caracterizam a estrutura e
a essência”52 . É que
dentro da ordem de valores constitucionais existem, naturalmente, aqueles que,
em certas situações, hão de preferir à segurança jurídica.
De qualquer
maneira, não se pode legislar de maneira arbitrária e irresponsável, fazendo tabula rasa da garantia constitucional de segurança, já que, na ausência de
justificativa extraída da própria ordem constitucional, não se admite a
atividade legislativa ofensiva ao importante princípio sub examine.
7.
Ética, justiça e segurança na ordem jurídica
O homem não
sobrevive sem a sociedade e esta não cumpre sua função sem o Direito. É que a
vida em sociedade se trava por meio de relações entre sujeitos livres,
inteligentes e que são iguais em substância e dignidade. Nesse ambiente são
inevitáveis os conflitos de interesse já que os bens necessários (materiais ou
imateriais) à vida de cada um são freqüentemente os mesmos. É para evitar ou
remediar tais conflitos que o Direito traça as regras de acesso aos bens da
vida, dentro da comunhão social. A missão que lhe toca é fundamentalmente a de
evitar os atritos e implantar a harmonia entre os membros da comunidade
civilizada. Numa palavra, seu objetivo é a paz.
Para
organização de seu programa pacificador, o Direito maneja com dois valores
primaciais: a Justiça e a Segurança. O primeiro deles corresponde a anseio de
ordem ética, cujo conteúdo é variável e indefinível, tendendo, quando levado a
sua pureza extrema, a um caráter absoluto inatingível pelas limitações do
conhecimento possível do homem, dentro do plano da racionalidade. O segundo é a
meta prática, concreta, que o Direito pode e deve realizar, e que a inteligência
humana pode perfeitamente captar, compreender e explicar. É com o seu concurso
que a paz procurada pela sociedade consegue ser estabelecida.
Sem a paz não
se pode pensar na justiça, mesmo porque sendo absoluta e inacessível em sua
totalidade, e ensejando aos indivíduos e grupos captação e entendimento por
ângulos e modos distintos, a justiça, quando levada ao absoluto, tem o dom de
fomentar disputas e atritos sem fim. Em suma: enquanto a segurança conduz à paz,
a justiça induz à guerra53 .
Como o valor absoluto da Justiça está fora do alcance da obra normativa do
homem, o Direito se contenta em implantar a ordem, a segurança, dentro de um
norte inspirado em certos padrões extraídos de alguns valores éticos que o
anseio de justiça da sociedade consegue ressaltar. O mundo do Direito, portanto,
não é o da Justiça (em seu feitio absoluto). É o da segurança. Sem justiça
alguma o Direito - é verdade - encontrará dificuldades para manter seu projeto
de pacificação social. Sem segurança, porém, o Direito simplesmente não existe.
Daí porque o
legislador, quando descamba para o plano em que os valores éticos ocupam o lugar
dos preceitos certos, claros, impositivos que devem ser as normas jurídicas
autênticas, realiza na verdade a destruição da ordem jurídica. Em lugar da paz e
harmonia que a segurança jurídica pode proporcionar, estabelece as dúvidas e
divergências próprias da natureza incerta e imprecisa da justiça; em vez de
ordem passa a viger o caos; e o Estado que abre mão da segurança em sua
organização não pode, por conseguinte, ser qualificado como um Estado de
Direito. Será, isto sim, um Estado caótico, desorganizado, um Estado de não-direito, um Estado que perde a confiança de seus cidadãos.
É natural que
o homem, sendo dotado não só de razão, mas também de sentimento, cultive valores
éticos, apurados ao longo da vida social civilizada, e queira que o ordenamento
jurídico não seja hostil a tais valores. O que não pode é recorrer a valores
imprecisos e inalcançáveis em sua essência absoluta pela razão, para destruir
aquilo de concreto e efetivo que o direito pode e deve construir: a segurança
jurídica. A justiça pode e deve estar, de alguma forma, presente na ordem
jurídica. O que não se admite é que sirva de instrumento para negá-la,
recusando-lhe a força pacificadora de que não pode prescindir para cumprir sua
função no Estado de direito democrático.
Calha bem ao
momento atual do direito brasileiro a sábia advertência de Ortega y Gasset sobre
o abuso da superposição do ético ao jurídico:
“De tanto falar de justiça se
aniquilou o jus, o Direito, porque não se respeitou sua essência, que é a
inexorabilidade [impositividade] e a invariabilidade [certeza]. O reformismo do
Direito, ao fazê-lo instável, mudadiço, o estrangulou”.54
Urge, pois,
evitar a consumação da morte do Direito, restaurando e conservando sua essência:
a segurança jurídica.
8.
Crítica à onda reformista por que passa o país
É induvidável
que o ordenamento jurídico não pode ser estático e que deve evoluir acompanhando
o desenvolvimento social, cultural e econômico da nação. Os instrumentos
jurídicos devem se compatibilizar com as necessidades organizacionais da
sociedade que aspira a melhorar e progredir em todos os segmentos da vida
comunitária.
Múltiplos são
os valores que se põem em jogo nessa marcha evolutiva da sociedade contemporânea
e todos eles dependem de uma boa base de sustentação jurídica, pois é ao direito
que toca a tarefa de estruturar e viabilizar a convivência social.
Por mais que
se proclame que certos valores são supremos e invioláveis, sua efetiva
implantação na vida em sociedade somente se tornará realidade se as estruturas
jurídicas contarem com um sistema normativo confiável e sobretudo seguro. É
inadmissível uma sociedade que se diz fundada na liberdade e na legalidade, e
que pretenda tutelar a dignidade da pessoa humana, relegar a plano secundário a
segurança das relações jurídicas travadas em seu seio.
Quem diz
direito, acima de tudo diz paz, paz no relacionamento daqueles que compõem o
tecido social do Estado de direito. Não é para outro fim que o direito organiza
o Estado Democrático. Como, portanto, imaginar a vida em paz e harmonia se não
se preocupar com a segurança nas relações implantadas sob a égide do direito?
Todos os povos
culturalmente evoluídos de nossa civilização vêem na segurança jurídica um
elemento essencial (e, por isso, indispensável) do Estado de direito
democrático, cuja presença na configuração dessa modalidade de Estado nem mesmo
depende de literal previsão na constituição de cada país. Trata-se de elemento
que deflui naturalmente da idéia de Estado de direito, nos padrões concebidos
pela democracia.
Falha,
portanto, o legislador quando, empolgado por alguns valores relevantes e
positivos, neles se concentra, e realiza obra renovadora de importantes
capítulos do ordenamento jurídico, ignorando, porém, a necessidade de preservar,
nas estruturas normativas renovadas, a segurança jurídica.
Todo o
ordenamento jurídico brasileiro, nas últimas décadas, tem sido perpassado por
uma onda intensa de revisão e atualização, tanto no terreno do direito público
como do direito privado. Em nome do princípio da socialidade e da justiça,
porém, nem sempre se tem destinado ao princípio de segurança jurídica a atenção
que ele reclama. De forma alguma temos a intenção de refrear o movimento
reformista, de interesse, utilidade e necessidades evidentes. Nosso propósito,
nas presentes notas, cinge-se a fazer um alerta para a imperiosidade de imprimir
ao movimento reformador uma direção que não se distancie dos padrões reclamados
pela segurança jurídica. Todos os valores positivos que a Constituição ressalta
devem se traduzir em regras legisladas que os tornem reais e presentes na vida
quotidiana normatizada pelo direito. Isto, porém, só será útil e correto, do
ponto de vista constitucional, se a implantação legislativa se der dentro dos
padrões da proporcionalidade a ser mantida na conjugação de todos os
princípios e valores fundamentais. Toda exaltação excessiva e desproporcional de
um valor isolado dos demais corre o risco de desequilibrar o sistema e de
comprometer aquele valor que preside a coordenação de todos, qual seja, a
segurança jurídica. E sem segurança não há liberdade, não há igualdade, não há
legalidade, não se pode cogitar da solidariedade social, nem se pode assegurar o
respeito à dignidade humana.
Na realidade,
grandes reformas legislativas têm sido promovidas sob aplauso geral da
comunidade jurídica brasileira e, de nossa parte, não deixamos de aderir a essas
loas. Nossas restrições voltam-se contra o descaso, em alguns episódios,
manifestado em face dos reflexos que a nova regulamentação legal possa produzir
sobre a segurança jurídica.
Podemos
ilustrar nossas preocupações com uns poucos exemplos apenas extraídos de algumas
das grandes leis que recentemente afetaram as principais codificações, no
direito público e no privado. Comecemos pela Carta Magna: é crônico o desprezo
(que chega às raias da má-fé política) devotado à segurança dos credores do
Estado, no tocante ao regime dos precatórios. Enfrentando as mazelas do sistema,
a Emenda Constitucional nº. 30 concedeu até 10 anos ao Poder Público para
resgatar parceladamente os débitos pendentes. Para melhorar a segurança dos
credores, concedeu-se poder liberatório para efeito de pagamento de tributos às
prestações que não fossem resgatadas no vencimento. Ora, se esse expediente de
liquidez pôde ser adotado no acerto das prestações antigas, por que não foi
adotado para todos os precatórios? A reforma que podia dar moralidade à execução
contra a Fazenda Pública acabou como simples remendo. Os créditos de
particulares contra o Estado continuaram, de tal sorte, desamparados pela ordem
jurídica. Nada lhes assegura efetividade, situação que desmoraliza o País,
porque não se conhece outra legislação que desampare tanto assim o credor da
Fazenda Pública.
Outro exemplo
flagrante de desrespeito à segurança jurídica se vê no Código de Defesa do
Consumidor, editado em 1990. Nele se estabeleceu, contra a estabilidade do
contrato, a possibilidade de revisão judicial de suas cláusulas “em razão de
fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (art. 6º, V), assim
como a nulidade daquelas que se mostrem “exageradamente desvantajosas” para o
consumidor (art. 51, nº. IV). Normas como essas não preservam a certeza da
relação contratual, porque editadas sem a clareza necessária e sem a delimitação
adequada das condições fáticas necessárias para afastar a força obrigatória do
contrato, sem a qual o mundo dos negócios não encontra segurança para suas
operações.
No direito
europeu, quando se cuida de permitir revisão de contratos de consumo, em defesa
de interesses do consumidor, o tema das cláusulas abusivas é delimitado: a
avaliação das cláusulas para qualificação de abusivas não alcança a determinação
do objeto do contrato, nem a adequação do preço dos bens e serviços, desde que
tais elementos estejam individuados de modo claro e compreensível (Código Civil
italiano, art. 1.469- ter - 1º parágrafo); nem podem ser acusadas de
abusivas cláusulas que reproduzem disposições de lei ou dispositivos e
princípios contidos em tratados ou convenções internacionais, de que sejam
partes os membros da União Européia, ou a própria União Européia (Cód. Civil,
italiano, art. 1.469 - ter - 2º parágrafo). Estas disposições
introduzidas no Código Civil da Itália em 1996, correspondem à Diretiva nº.
93/13/CEE, aplicável a todos os países da Comunidade Européia. Fácil é concluir
que a norma vaga ou cláusula geral que trata da revisão dos contratos de consumo
não é, na Europa, tão vaga como se poderia pensar. Há limites além dos quais o
intérprete do contrato e o aplicador da lei não podem ir, sob pena de desnaturar
o negócio jurídico e violar a autonomia negocial, comprometendo a segurança
jurídica das relações de mercado.
No campo do
direito civil, o novo Código de 2002, em nome da eticidade e da socialidade veio
repleto de normas editadas de forma vaga ou como cláusulas gerais. Até aí não se
pode dizer que tenha cometido infração à segurança jurídica. Mas, quando, v.g., manda restringir a liberdade de contratar aos limites da função social
(art. 421), sem qualquer cuidado de relacionar tal função a parâmetros
determinados e verificáveis nos casos concretos, induvidosamente implanta na
ordem jurídica obrigacional fator de grande insegurança. O mesmo se passa, no
terreno do direito de propriedade, quando cria uma desapropriação judicial, no
art. 1.228, § 4º, totalmente fora dos padrões de tutela constitucional traçada
para a utilização dos bens particulares pelo poder público em nome da utilidade
pública ou do interesse social (CF, arts. 5º, XXIV e 184-186). O dispositivo nem
mesmo define quem pagará o preço do imóvel expropriado pelo juiz e quando e como
tal pagamento se dará. A insegurança é total, portanto, e justamente para um
direito que figura entre aqueles que integram o rol dos direitos fundamentais
(CF, art. 5º, XXII).
Na área do
direito tributário, a Lei Complementar nº. 118, de 09.02.2005, nos dá um nítido
exemplo de abuso normativo, criando, ao falso pretexto de editar lei
interpretativa, um intolerável efeito retroativo, com o evidente propósito de
alterar o sentido da regra do art. 168, I, do CTN (Lei nº 5.172, de 25.10.66),
sentido este já fixado há dezenas de anos pela exegese jurisprudencial e
doutrinária. Criando, portanto, verdadeira norma nova, ao alterar uma exegese
largamente consolidada, o legislador não editou lei interpretativa. Criou, isto
sim, direito novo e, sob o rótulo de interpretação autêntica, simplesmente legislou para o passado. Ofendeu, com isso, o mais comezinho valor
contido no princípio de segurança, qual seja a vedação das leis retroativas55 .
Em matéria de
direito processual civil, o clamor social maior é contra a morosidade da
prestação jurisdicional, e para contornar essa mazela sucessivas alterações têm
sido introduzidas no Código de 1973, todas justificadas com argumentos
relacionados à efetividade e à celeridade do processo. Reconhecidamente a causa
maior da demora processual decorre, quase sempre, de um sistema de recursos
obsoleto e propício a manobras protelatórias dos litigantes de má-fé. Nada
obstante, as reformas do CPC não conseguem abolir recursos (nem mesmo quando se
trate de figuras estranhas e injustificáveis como os embargos infringentes e a
remessa ex officio) e, ao contrário, criam cada vez mais recursos
internos nos tribunais. Por outro lado, medidas que sabidamente poderiam
contribuir para expurgar atos e provas desnecessários, como a audiência
preliminar (art. 331, § 3º do CPC) são reformadas para pior, porque de
expediente obrigatório acabou por se transformar em mera faculdade dos juízes,
graças à infeliz alteração provocada pela Lei n.º 10.444, de 07.05.2002.
Outras
inovações, como as ocorridas na legislação falimentar (Lei nº. 11.101, de
09.02.2005), foram feitas de maneira incompleta: a lei nova, v.g., limita
sua aplicação ao devedor empresário, deixando de fora o devedor civil comum,
quando o próprio Código Civil atual procedeu à unificação do direito privado
obrigacional. Além disso, o principal objetivo da nova lei concursal - a
recuperação das empresas em crise - restou disciplinado de maneira incompleta:
faltaram mecanismos para sujeitar o credor tributário, de modo satisfatório, aos
propósitos de recuperação de empresas; e faltaram previsões de aparelhamento
judicial e administrativo, especializado e necessário, para encaminhar e
viabilizar, do ponto de vista técnico (econômico, contábil, mercadológico etc.),
o novo e complexo processo de recuperação.
A própria
Reforma do Poder Judiciário (EC nº. 45), pela qual se debateu e se aguardou por
mais de dez anos, acabou por decepcionar a todos. Não passou, na maioria de seus
dispositivos, do campo abstrato das normas de competência. Na pura realidade,
não está no âmbito das normas jurídicas a causa maior da demora na prestação
jurisdicional, mas na má-qualidade dos serviços forenses. Nenhum processo
duraria tanto como ocorre na justiça brasileira se os atos e prazos previstos
nas leis processuais fossem cumpridos fielmente. A demora crônica decorre
justamente do descumprimento do procedimento legal. São os atos
desnecessariamente praticados e as etapas mortas que provocam a perenização da
vida dos processos nos órgãos judiciários. De que adianta reformar as leis, se é
pela inobservância delas que o retardamento dos feitos se dá?
A verdadeira
reforma do Poder Judiciário começará a acontecer quando os responsáveis por seu
funcionamento se derem conta da necessidade de modernizar e reorganizar seus
serviços. O que lhes falta, e por isso os torna caóticos, é a adoção de métodos
modernos de administração, capazes de racionalizar o fluxo dos papéis, de
implantar técnicas de controle de qualidade, de planejamento e desenvolvimento
dos serviços, bem como de preparo e aperfeiçoamento do pessoal em todos os
níveis do Judiciário.
Essa reforma
não depende de esforço legislativo e só se viabilizará quando confiada a
técnicos fora da área jurídica, ou seja, a técnicos de administração. Daí o
fracasso de todos os exercícios até hoje realizados no plano puramente jurídico
e normativo.
9.
Conclusões
A marcha de
reforma e aprimoramento do ordenamento jurídico é necessária e jamais encontrará
termo. Há de acompanhar o homem na sua permanente busca de aperfeiçoamento no
convício social civilizado.
Nenhuma lei,
nenhum Código pode aspirar a uma definitividade que exclua revisões, acréscimos,
modificações e substituições. Integrando todas as normas jurídicas o sistema
constitucional democrático, a tarefa renovadora do legislador terá de se
inspirar não apenas no propósito de inserir cada vez mais valores éticos no
direito positivo, pois, qualquer que seja o projeto de aprimoramento normativo
terá sempre de ser levado avante sem atritar com os grandes e fundamentais
princípios formadores do alicerce da ordem constitucional. E se o Estado, em que
as reformas estão ocorrendo, é como o Brasil, um Estado de direito democrático,
nunca poderá o legislador reformista descurar-se da observância das exigências
da segurança jurídica, em seus vários e complexos aspectos (clareza da lei,
previsibilidade de seus efeitos, confiabilidade dos destinatários nos agentes e
aplicadores do direito, preservação da eficácia das relações já estabelecidas,
compatibilização das regras novas com o sistema geral de organização normativa
etc.). Progresso, sim, mas sem comprometer a segurança jurídica, que a
Constituição consagra como fundamento do Estado de direito e como garantia
fundamental dos indivíduos que vivem em seu seio e sob sua proteção.
É preciso não
esquecer, que embora não seja absoluto - e nenhum princípio jurídico é absoluto,
- “o princípio de segurança jurídica é provavelmente uma das regras mais
fundamentais do direito numa sociedade e num Estado regido pelo direito”56 .
Finalmente,
impende ressaltar que a submissão ao princípio de segurança jurídica não é
exclusiva do legislador, mas cabe a todos os detentores do poder público. Tanto
a Administração como a Justiça (especialmente esta) desempenham relevante papel
na preservação da segurança jurídica, de sorte que suas decisões não podem
aplicar as leis novas segundo interpretações ofensivas aos critérios da
razoabilidade e proporcionalidade e com quebra da confiança incutida aos agentes
dos atos jurídicos, quanto aos efeitos normais esperados, segundo as normas e
interpretações vigentes ao tempo de sua prática.57
NOTAS DE RODAPÉ
1. “As novas e sempre crescentes atribuições do Estado
intervencionista têm distorcido a cisão de certos princípios jurídicos, cuja
pureza é dever de o jurista distinguir e defender. As concepções do
Estado-Providência ou do Estado de Direito Social procuram privilegiar a atuação
estatal, visualizada mais como realidade de fins do que como execução ex
officio do Direito. Com isto, procura-se esmaecer a força do princípio
da legalidade para que possa a Administração interferir no munus da tributação. Esta é uma orientação cuja perversidade cumpre combater (…).
Protege-se a pessoa humana dos abusos e inconstâncias da Administração,
garantindo-lhe um ‘estatuto’, onde emerge sobranceira a segurança jurídica, o
outro lado do princípio da confiança na lei fiscal, a que alude a doutrina
tedesca” (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro; LOBATO, Valter. “Reflexões sobre o art.
3º da Lei Complementar 118. Segurança jurídica e a boa-fé como valores
constitucionais. As leis interpretativas no Direito Tributário Brasileiro”. Revista Dialética de Direito Tributário, v. 117, p. 112).
2 . Desastrosa, entre muitas outras, foi, por exemplo, a inserção no novo Código
Civil, da cláusula geral que submete a liberdade de contratar aos limites da
função social do contrato (art. 421). Ora, nunca antes se cogitara de
identificar uma função social na contratação dos negócios patrimoniais do
direito privado. Como então impor o legislador que se observe um parâmetro
desconhecido, sem indicar aos contratantes onde buscar elementos para
identificá-lo e sem traçar qualquer espécie de limite a essa busca de uma função
nova e inidentificada? O resultado somente poderia ser o caos doutrinário e
jurisprudencial. Cada intérprete e cada aplicador usa o parâmetro que lhe é
simpático e chega a limites e conclusões os mais díspares e incongruentes.
3. O STF já decidiu que “todos os atos emanados do
Poder Público estão necessariamente sujeitos, para efeito de sua validade
material, à indeclinável observância de padrões mínimos de
razoabilidade” (...). E que a razoabilidade é exigência que se qualifica como “parâmetro
de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais”.
Dentro dessa perspectiva o abuso de poder é possível configurar-se também no
desempenho da função legislativa, dando ensejo á configuração de
inconstitucionalidade. Ou seja, no entendimento da Suprema Corte, “a teoria do
desvio de poder, quando aplicada ao plano das atividades legislativas, permite
que se contenham eventuais excessos decorrentes do exercício imoderado e
arbitrário da competência institucional outorgada ao Poder Público, pois o
Estado não pode, no desempenho de suas atribuições, dar causa à
instauração de situações normativas que comprometem e afetem os fins que
regem a prática da função de legislar” (STF, Pleno, MC na ADI nº. 2.667-DF,
Rel. Min. Celso Mello, ac. 19.06.2002, RTJ 190/875).
4 ALMEIDA, Luís Nunes de. Relatório na XVª
Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999,
sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire
Internacional de Justice Constitutionnelle, XV, 1999. Paris: Economica,
2000, p. 249. Em doutrina, J. J. GOMES CANOTILHO registra que os princípios
de segurança jurídica e de proteção da confiança são elementos constitutivos
do Estado de Direito (Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
4.ed. Coimbra: Almedina, p. 256). Na jurisprudência há uma série de
julgados, desde os tempos da Comissão Constitucional até os tempos atuais do
Tribunal Constitucional, podendo exemplificar com o acórdão nº. 666/94, onde
se assentou: “a segurança dos cidadãos (e sua confiança subseqüente na ordem
jurídica) é um valor essencial do Estado de Direito que gira em torno da
dignidade da pessoa humana - pessoa que é a base e a finalidade do poder e
das instituições” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, v. 29,
p. 349, apud ALMEIDA, Luís Nunes de., op. cit., p. 250). Para
este último autor, a tese de que o princípio em questão se consagra como
decorrência necessária do Estado de Direito Democrático, do qual participa
como elemento constitutivo, configura opinião unânime da jurisprudência e da
doutrina em Portugal (ALMEIDA, Luís Nunes de., op. cit., p. 250-251).
5 SPILIOTOPOULOS,
Epaminondas. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em
Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et
sécurité-juridique”. In: Annuaire Internacional de Justice
Constitutionnelle, XV, 1999. Paris: Economica, 2000, p. 193.
6 SCOFFONI, Guy. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em
Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution et
sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 149.
Lembra o autor que a Constituição dos Estados Unidos prevê, expressamente, a
interdição para o legislador federal de adotar leis retroativas (art. I,
Seção 9-3); e também proíbe os Estados, em sua área de competência, de
adotar “lei retroativa” ou de enfraquecer por meio de lei “a força dos
contratos” (art. I, Seção 10-1).
7 PIZZORUSSO,
Alessandro; PASSAGLIA, Paolo. Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional
realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema “Constitution
et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p.199.
8 AC
de 12.9.1995, nº. 422, Foro italiano, 1995, I, p. 3.386, apud
PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 224.
9 AC
de 17.12.1985, nº. 349, apud PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA,
Paolo, op. cit., p. 219 e 225.
10 PIZZORUSSO, Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 224
11 PIZZORUSSO,
Alessandro; PASSAGLIA, Paolo, op. cit., p. 225
12 ZIMMER, Willy. Relatório na XVª Mesa
Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre
o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 91.
13 ZIMMER,
Willy, op. cit., p. 93.
14 MATHIEU, Bertrand.
Relatório na XVª Mesa Redonda Internacional realizada em Aix-en-Provence, em
setembro/1999, sobre o tema “Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit., p. 155-156.
15 MATHIEU,
Bertrand, op. cit., p. 156.
16 MATHIEU,
Bertrand, op. cit., p. 191. Na doutrina tributária brasileira o princípio da segurança
jurídica desfruta de grande prestígio, de sorte que a taxação que a ele não
se afeiçoa, por obra do Legislativo ou da administração, incorre em abuso,
excesso ou desvio de poder, violando a ordem constitucional (Cfr. Entre
outros, MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 31; TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 207).
17 CJCE,
14.07.72, affaire 57-69, Rec. P. 933, apud MATHIEU, Bertrand, op.
cit., p. 191.
18 “A segurança
jurídica em sentido geral pode ser considerada como sinônima do princípio do
Estado de direito tal qual é tratado pela doutrina e jurisprudência
constitucional, austríaca” (PFERSMANN, Otto. Relatório na XVª Mesa Redonda
Internacional realizada em Aix-en-Provence, em setembro/1999, sobre o tema
“Constitution et sécurité-juridique”. In: Annuaire cit.,
p. 113).
19 CANOTILHO,
J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed.
Coimbra: Almedina, 1999, p. 250 apud ALMEIDA, Luís Nunes de, op.
cit., p. 249-250.
20 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição. 4.ed. Coimbra: Almedina,
s/d, p. 256.
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