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O conceito de Céu Empíreo enquanto sendo um lugar real é uma
idéia justa, tradicional e que se impõe ao nosso espírito.
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Gostaria de saber o que
pensa Ami du Clergé a respeito
da opinião reproduzida
pelo Dictionnaire
de Théologie Catholique,
de que o Céu, morada dos Anjos e
dos Eleitos, é um lugar material. Santo
Agostinho parece estar mais perto da
verdade ao dizer que Deus é o “lugar
de nossas almas”.
Falso antagonismo entre
duas concepções
Trata-se de uma questão sutil e difícil,
para não dizer impossível, de
responder. Assim, não tentaremos
propor uma solução completa, mas
apenas definir com precisão os aspectos
sob os quais este problema,
segundo a tradição eclesiástica, recebeu
um início de solução com a qual,
por falta de dados posteriores, a sabedoria
nos convida a contentar-nos.
Nosso consulente opõe a opinião
do Céu como lugar material à concepção
agostiniana que vê Deus como
a residência dos espíritos.
Como demonstraremos a seguir,
essa oposição não tem razão de ser.
Reflitamos a esse respeito tão-somente
com a luz da razão: se a hipótese
de Deus enquanto morada dos
espíritos é, em si, admissível quando
consideramos somente as almas antes
da ressurreição final dos corpos,
ela se torna incompleta, insuficiente,
se não positivamente falsa, quando
nos perguntamos onde ficarão os
corpos gloriosos após a ressurreição
e, desde já, onde estão a humanidade
santa de Nosso Senhor e o corpo
glorioso da Bem-Aventurada Virgem
Maria, sua Mãe.
O bem-aventurado continuará
na eternidade com seu
corpo, embora glorificado
Embora glorificados, os corpos
dos bem-aventurados continuam corpos,
e sua sutilidade não impede que
tenham uma presença física e, por
conseguinte, seja necessário situálos
num lugar real. Esta é a consideração
geral, à qual gostaríamos de
acrescentar algumas precisões e desdobramentos.
1º.
Deus, morada dos espíritos
O pensamento de Santo Agostinho
a respeito deste ponto não é tão firme
quanto parece. Se relermos o
artigo “Céu” do citado Dictionnaire
de Théologie Catholique, encontraremos
um eco das hesitações do
grande Doutor no concernente ao
momento e ao local da retribuição
completa.
Ele hesita sobre a distinção a fazer,
ou a identidade a estabelecer,
entre o Paraíso, morada dos eleitos
antes da última vinda de Cristo, e o
Céu, morada dos eleitos ressuscitados.
Por vezes, ele parece identificálos
e se pergunta se essas diversas denominações
não exprimem uma só
e mesma realidade, isto é, a morada
comum de todos os bem-aventurados.
E é então que ele declara que essa
morada das almas bem-aventuradas
se parece com um lugar material: “loca similla corporalibus”.
Se Santo Agostinho aceita essas
hipóteses, não podemos pensar em
opor à idéia de um Céu, lugar material,
a asserção que se lê nos dizeres
do santo Doutor no concernente
a Deus, residência das almas: “Gostaríeis
de saber diz ele onde se encontra
essa plácida morada na qual
se vê Deus face-a-face? Ora, que
o próprio Deus seja o lugar de
nossas almas, após esta vida!”
Este desejo de Santo
Agostinho às suas ovelhas
exprime perfeitamente a única solução prática que
comporta, para os simples
fiéis, o problema
do lugar do Céu. É como
se o santo Doutor
tivesse querido dizer: “Não me peçam para
aprofundar esta
questão, toda ela especulativa,
da morada
dos bem-aventurados. Uma só coisa importa: após
a nossa morte, nossa alma se encontra
junto de Deus”.
Podemos verificar de imediato o
alcance desta assertiva, inteiramente
moral, e que deixa de lado o aspecto
metafísico do problema da residência
dos eleitos.
Posição fundamental dos
Padres da Igreja
2º. O Céu, residência ou lugar
dos eleitos.
Esta segunda asserção
representa, com efeito, o pensamento
fundamental dos Padres e dos
Doutores da Igreja. Ela deve ser entendida
no seu significado tradicional,
um significado muito genérico e
desembaraçado de qualquer especulação
metafísica, se quisermos separar
o campo da doutrina comumente
admitida da qual não é possível
afastar-se sem temeridade
do campo
da hipótese
e da especulação puramente escolástica.
Quaisquer que tenham sido os erros
ou as hesitações dos Padres da Igreja
nos três primeiros séculos, relativamente à admissão imediata das almas
dos justos no Céu, sua doutrina a respeito
do Céu enquanto morada ou lugar
dos eleitos não deixava de ser firme
e constante. O autor do artigo do Dictionnaire
de Théologie Catholique visa
contestar peremptoriamente certas
assertivas lançadas sem fundamento
contra essa doutrina tradicional. Com
efeito, para os Padres antenicenos o
Céu é a morada das almas dos leitos;
o lugar da recompensa incorruptível; a
estância do repouso eterno em Deus.
Trata-se de um mundo que transcende
a terra, uma região superior e etérea.
Diz o Dictionnaire de Théologie Catholique
que “a doutrina católica sobre o
Céu foi fixada imutavelmente em suas
linhas principais pelos Padres antenicenos:
todos são unânimes
em afirmar a existência de
uma vida ultraterrestre
comum a todos
os bem-aventurados, num lugar próprio,
que é o Céu”.
É sobre essa idéia fundamental e
imutável que se acrescentarão mais
tarde as hipóteses, as questões subsidiárias
e às vezes sutis. Mas, enquanto
a idéia fundamental possui um valor
doutrinário real e absoluto, as hipóteses
e as especulações escolásticas
não se imporão.
Céu Empíreo e lugar material
A principal dessas especulações é
a relativa à concepção do Céu Empíreo,
que se encontra em germe em
São Basílio e à qual São Beda e posteriormente
Pedro Lombardo deram
a consistência de uma verdadeira
doutrina em termos de escola.
Uma vez engajados nessa via, os teólogos
procuraram determinar a natureza
do Céu Empíreo e suas propriedades
físicas; questões sutis, por vezes
ociosas, às quais não pode ser dada
nenhuma solução séria.
Importa notar que, desembaraçada
das sutilezas e das hipóteses inerentes à doutrina do Céu Empíreo, a idéia geral
e ainda imprecisa de um lugar real
(entendamos assim, num sentido talvez
analógico, como convém para as
coisas do além, o termo “corporal” utilizado
por certos autores) é uma idéia
justa, tradicional e que se impõe à adesão
de nosso espírito como uma doutrina
da qual não é possível afastar-se
sem temeridade.
(Traduzido, com adaptações,
de L’Ami du Clergé, 1922,
pp. 667-668.)
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